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O Conselho de Medicina quer sequestrar a Cannabis?



26/10/2022



Uma planta milenar sequestrada por uma resolução. Temos direito de proibir algo mais antigo que o budismo, cristianismo ou islamismo?

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Foto: Reprodução / Freepik

A comunidade médica e canábica foi surpreendida – ou nem tanto – por uma resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) na última sexta-feira, dia 14 de outubro de 2022. A resolução 2.324/2022 na prática proíbe médicos de todo o Brasil de prescrever qualquer medicamento à base de Cannabis para qualquer doença, excetuando-se a prescrição apenas do canabidiol, uma molécula isolada encontrada na planta, para duas síndromes epilépticas raras da epilepsia. Além disso, esta prescrição apenas é válida para crianças e adolescentes. Após a repercussão bastante negativa que teve esta medida, neste dia 24/10/2022 acabou sendo suspensa a referida resolução e o tema estará sob consulta pública para que o CFM receba contribuições de toda a sociedade. 

Leia também: É oficial! CFM suspende temporariamente resolução que restringe uso da cannabis

Apesar da suspensão, neste momento, acho muito importante discutirmos o poder que um pequeníssimo grupo de cidadãos – no caso, médicos da direção de um conselho profissional – podem ter sobre a vida de milhões de pessoas. Não quero e não tenho competência para discutir termos legais e jurídicos desta nova resolução e quais riscos os médicos estão correndo se prescreverem Cannabis no Brasil. Embora, lendo e ouvindo, principalmente os camaradas advogados da Rede Reforma –  rede de advogados que trabalham por uma regulação de drogas baseado em ciência e direitos humanos – compreendo que há muito espaço para que as prescrições sigam ocorrendo e que esta resolução é inconstitucional.

Mas quero trazer outro pensamento para o debate: será que não é hora de falarmos sobre o monopólio de profissionais (neste caso, profissionais médicos) sobre os medicamentos, especificamente sobre uma planta?

Quem é a Cannabis?

A Cannabis é uma planta originária da Ásia que se espalhou pelo mundo nos últimos milênios. Em razão dos seus efeitos farmacológicos era muito usada para rituais religiosos, para curas e alívios e para uso social e relaxamento, como tantas outras plantas. Há sinais de que o homem conhece e cultiva a Cannabis há mais tempo que se relaciona e cultiva o trigo ou o milho, que faz cerca de 10 mil anos. 

A proibição foi “ontem”

Considerando milhares e provavelmente décadas de milhares de anos que conhecemos e utilizamos esta planta, podemos dizer que a proibição da planta aconteceu ontem, quase anteontem, pois foi na primeira metade do século passado que o mundo de forma quase que global iniciou a Guerra às Drogas e teve a maconha como umas das drogas principais que foram proibidas. 

A ONU quis erradicar a Cannabis da face da Terra

A ONU em 1961 definiu a maconha como substância perigosa, tóxica e viciante e sem nenhuma utilidade terapêutica. A ONU também recomendou que todos os países associados trabalhassem para erradicar a planta de seus territórios. Apenas em 2021 a ONU retirou a Cannabis desta lista de drogas.

Quem salvou a Cannabis?

Ora, se em quase todo o globo terrestre a planta estava proibida, foram pequenos países que não proibiram a planta e principalmente, cultivadores que se tornaram clandestinos nas últimas décadas que mantiveram, cuidaram, cruzaram e fizeram melhoramentos genéticos na Cannabis, tudo isso, apesar da proibição e da perseguição pela qual foram submetidos. Se ainda temos a Cannabis entre nós hoje, foi graças aos cultivadores que arriscaram suas vidas e liberdades e foram e ainda são, muitas vezes, marginalizados e criminalizados. 

E agora, quem controla ou quer controlar a planta?

Aqui que mora o perigo e a discussão é importante. Vamos comparar a Cannabis com qualquer outra planta que tenha propriedades medicinais, como o boldo ou a camomila. Estas plantas são desprovidas de efeitos tóxicos ou interações medicamentosas? Não! Esse ditado que tudo que é natural não faz mal é verdade? Não! Plantas também podem fazer mal, tem que ter cuidado na preparação, armazenamento, posologia e como tomar. Os usos destas plantas são normalmente mais seguros e eficazes quando prescritos e indicados por médicos, farmacêuticos, fitoterapeutas e outros profissionais devidamente capacitados para tal objetivo. Mas não só, existem pessoas sem formação acadêmica com um conhecimento enorme sobre plantas medicinais, seus preparos, usos, indicações, e cuidados, senhoras e senhores que aprenderam este ofício com seus pais e avós, povos originários, pequenos agricultores e outros que trazem conhecimentos de gerações sobre plantas. Então, está claro que o conhecimento não é produzido e disseminado apenas por nós, acadêmicos portadores de diploma, no caso de plantas medicinais, muito pelo contrário. 

Uma planta não tem dono

Como toda planta, no Brasil a Cannabis não pode ser patenteada ou registrada como propriedade intelectual, tampouco moléculas isoladas desta planta. Isso difere de uma molécula criada em laboratório que pode ser protegida por uma patente ou registro de propriedade intelectual, obviamente. 

Mas afinal, se não se proíbe o boldo ou a camomila por que se proíbe a Cannabis? É lógico que o uso da Cannabis orientada e acompanhada por profissionais é a melhor alternativa. Mas temos direito, nós “acadêmicos” ou “profissionais” de proibirmos algo que não criamos? Temos direito de proibir algo que demonizamos devido a motivos raciais e econômicos? Temos direito de proibir algo que não cultivamos, que não conhecemos seus usos ancestrais, não guardamos e não reproduzimos o conhecimento acerca dela? Temos direito de proibir algo que não causa danos graves e que não há nenhum relato no mundo de toxicidade fatal ou overdose? De onde vem a soberba e o autoritarismo para proibirmos algo ancestral, milenar, seguro e mais antigo que o budismo, cristianismo ou islamismo? Temos plantas que realmente podem levar à morte e não são proibidas. Temos o álcool que é um droga muito mais pesada que a Cannabis e pode matar em uso excessivo que não é proibido. A proibição da Cannabis tem origem racial, xenófoba e econômica (para saber mais clique aqui).

Leia também: Conselho Federal de Medicina abre consulta pública para avaliar usos da cannabis medicinal

Com esta resolução do CFM dezenas ou centenas de milhares de pacientes não poderão ter uma receita médica para tomar medicamentos derivados de Cannabis  e terão que interromper seus tratamentos porque um grupo de médicos que estão chefes de um comitê médico não permite o seu uso. Atitude que vai em direção contrária a dezenas de países e na contra mão de milhares de médicos brasileiros que tem prescrito esta planta para seus pacientes. Esta atitude também vai em direção contrária à maior parte dos médicos brasileiros que atuam ou entendem do assunto.

Eu tenho a sensação que a planta foi sequestrada pelo grupo de médicos que ocupa neste momento a direção do Conselho Federal de Medicina. Assim, como no Brasil atual fascistas sequestraram Cristo e suas ideias e agridem pastores e padres que defendem que cristãos devem combater a fome e ódio, esta resolução sequestra o uso de uma planta que ocorre há milhares de anos. Estes senhores proibicionistas tem o poder de proibir que a sociedade use uma planta! Paremos e pensemos nessa surrealidade, por favor. Meia dúzia de senhores tem o poder de proibir que a sociedade inteira faça uso de uma planta que a própria sociedade já utiliza há milhares de anos e no Brasil há pelo menos alguns séculos.

Foram milhares de anos e necessário o trabalho de milhões de pessoas até termos as variáveis de Cannabis que possuímos hoje. Porém, neste país que estamos, não se permite plantá-la, não se permite a prescrição, mas vejam só, se permite o uso de uma molécula da planta, o Canabidiol. E aí a mãe não pode plantar uma maconha rica em Canabidiol para tratar as convulsões ou o autismo de seu filho, mas pode comprar na farmácia o Canabidiol custando 3 salários mínimos para a epilepsia. Nem pro autismo pode. O transtorno de espectro autista não possui nenhum tratamento medicamentoso, os derivados da Cannabis tem mostrado em vários estudos que podem ajudar estes pacientes, milhares de brasileiros autistas utilizam e suas famílias reportam ganhos de qualidade de vida muito interessantes, mas, por aqui, os chefes de um comitê médico não gostam da ideia e aí quase 1 milhão de pacientes ficarão sem seu tratamento.

Sim, faltam muitos estudos para demonstrar de forma inequívoca que a Cannabis e suas moléculas são eficazes em quase todas as doenças para as quais tem sido utilizada. A segurança também precisa ser avaliada, embora a segurança da Cannabis é enorme se usarmos doses baixas e moderadas e já temos muita literatura sobre isso. Então poderíamos pensar que o CFM está super preocupado com a segurança e as evidências e só endossará o uso da Cannabis quando de fato houver evidência científica robusta para determinadas doenças? Não, não, infelizmente não. Esta mesma direção do CFM seguiu apoiando o uso da cloroquina mesmo após dezenas de estudos provando sua ineficácia contra a Covid-19. Esta mesma direção do CFM jamais se pronunciou contra os argumentos antivacina do atual governo em meio à pandemia. A favor da vida ou favor do sofrimento trabalha esta direção? Ou seja, o CFM está dando de ombros para a Medicina Baseada em Evidências. Então, por que ela proíbe que os médicos a prescrevam? Existem outros interesses ou relações de conflito entre os membros deste comitê médico responsáveis por esta decisão? Só eles poderão responder ou instituições competentes que possam investigar.

O que eu gostaria de propor é pensarmos sobre o monopólio que nossa sociedade delega a tão poucas pessoas – um pequeno grupo que chefia um comitê médico – ou para uma única profissão que tem o poder de permitir que toda a sociedade possa usar ou não uma planta que foi a própria sociedade que cuidou, cultivou, cruzou, desenvolveu, aprendeu a preparar e descobriu indicações. É sempre melhor tomar um boldo que tenha tido suas substâncias dosadas e quantificadas e acompanhado de um médico ou um farmacêutico ou enfermeiro. Mas é justo a proibição do boldo? Impedir que eu plante o meu boldo e prepare o meu chá se tiver um desconforto gástrico? Preciso pagar para um profissional para ele me habilitar a preparar meu próprio chá que há séculos meus antepassados aprenderam a cultivar, preparar e usar? Quem é dono e a quem pertence o conhecimento milenar sobre o boldo? Quem é dono e a quem pertence o conhecimento milenar sobre a Cannabis?

E outras profissões que podem prescrever outras plantas e fitoterápicos vão ficar paradas sem agregar valor e ajudar a sociedade? Seus conselhos, como o de Farmácia não vai aproveitar e regular a consulta farmacêutica da Cannabis neste momento que a Medicina parece não querer saber deste produto? Destaco, que neste momento, sob a RDC 327 da Anvisa que regula os produtos de canabinoides, os canabinoides NÃO são classificados como medicamentos, o que em tese, poderia permitir mais área de atuação para outros profissionais. Se o CFM decidir que médicos não podem prescrever derivados de Cannabis todo um país ficará refém dessa decisão e pacientes terão seus direitos e possibilidades de tratamento simplesmente negadas?

A Cannabis não é apenas o Canabidiol. A Cannabis não é apenas uso médico. A Cannabis é de quem a cuidou, plantou, cultivou, planta e cultiva. Os problemas relacionados à Cannabis surgem após sua proibição. A proibição ou restrição mata, faz sofrer, desrespeita e agride. O destino final só pode ser o fim de qualquer proibição sobre esta planta, e creio, todo profissional da saúde que pesquisa, prescreve, trabalha com Cannabis, deve buscar este entendimento e vê-la como algo público, da natureza e definitivamente sem dono, sem moderador ou censor.

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Francisney Nascimento

Francisney P Nascimento - Farmacêutico e Mestre em Farmacologia (UFSC). Doutor em Farmacologia (UFSC/Dalhousie University). Pós-doutorado em Neurofarmacologia (McGill University). Professor de Farmacologia Clínica e de Canabinologia Médica nos cursos de Medicina e Mestrado em Biociências na UNILA (Foz do Iguaçu). Coordenador do Lab de Neurofarmacologia Clínica. Sócio-fundador da empresa 3F Clinical Trials e Inovação Canabinoides. Realiza pesquisa clínica com canabinoides desde 2017. Instagram: neypnascimento