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Regulamentar o cânhamo sem esquecer da realidade



31/05/2025


Brasil avança na regulamentação do cânhamo, mas ainda enfrenta desafios práticos e estruturais. Precisamos mais que boas intenções

Regulamentar o cânhamo sem esquecer da realidade

Regulamentar o cânhamo sem esquecer da realidade

 São 2 horas da manhã de sábado, e mesmo tendo passado a semana estudando sobre regulamentações mundo afora, ao deitar na cama quente, senti uma vontade enorme de escrever tudo de uma vez. Claro que pode me faltar conhecimento sobre uma legislação ou outra, mas contemplo o fato de que não preciso de muito mais que a experiência dos meus 1.300 e poucos pacientes para escrever sobre a regulamentação do cânhamo no Brasil. 

 Como somos filhotes mansos de todo movimento cultural da América do Norte, apesar de termos sido a rota que levou cannabis para essas terras, vou usar uma designação lá de cima para diferenciar porcentagens de canabinoides. Usarei “cânhamo/hemp” para cannabis com baixo teor de THC (pense num óleo full spectrum tradicional) e “marijuana/cannabis” para plantas com mais de 0,3% desse canabinoide. Na verdade, se trata absolutamente da mesma planta, só estou colocando essas denominações para fazer um paralelo com as terminologias dos Estados Unidos. Fato é que logo teremos a regulamentação do cânhamo no Brasil. Notícia maravilhosa, não acha? Eu acho! Também acho que é preciso entender alguns pontos antes de sairmos comemorando a consolidação de uma utopia antiga. 

Primeiro, dá pra fumar 10 Kg de cânhamo que você não vai ficar doidão. Pronto, daqui pra frente você entende a importância da planta para além do uso adulto. Certo, então como podemos melhorar a qualidade de vida do povo brasileiro com isso? 

Apresentações como “extrato de cannabis sativa” — leia-se “CBD full spectrum” — têm demonstrado eficácia promissora no tratamento de uma série de transtornos, incluindo epilepsia refratária, dor crônica, insônia e ansiedade. Pessoalmente, creio que apenas 20% dos meus pacientes têm que ter associação de outro componente, portanto, a grande maioria já se beneficiaria absurdamente de uma produção nacional de cânhamo. 

Vamos aos números: 6.000 mg de extrato de Cannabis sativa no Brasil (na farmácia) hoje custam R$: 2.800,00. Se você ir para uma associação, incluindo taxa, gastará quase R$: 1.000,00, mas não terá análise vasta de contaminantes ou terpenos disponíveis no certificado de análise (COA). Sem sombra de dúvidas, hoje o melhor custo-benefício reside na importação de CBD de outros países, principalmente dos EUA. Lá, o frasco mais barato custa R$: 500,00, e agora você consegue notar a discrepância entre o que pagamos e o que nos parece justo. 

Durante o processo de estudo de outras regulamentações, notei uma peculiaridade que nós, brasileiros, viveremos: outros países como EUA, Canadá, Alemanha, Inglaterra, Holanda e Uruguai não tinham nem de perto a quantidade de associações que o Brasil tem hoje! As associações têm papel social extremamente significativo, mas hoje ainda não conseguem fornecer CBD a um preço competitivo com as importações, assim como não conseguem oferecer um certificado de análise com perfil de terpenos e demais contaminantes como fazem seus concorrentes americanos. Claro que é fato alheio à vontade dos donos das associações — isso se dá porque aqui o nível de tecnologia associado ao cultivo é muito mais escasso do que o que acontece na terra do tio Trump. Pois, justamente nesse ponto de vista reflexivo e real, eu quero fazer meu principal questionamento acerca das novas medidas. 

Países que regulamentaram o cultivo do cânhamo para que fosse feito apenas por algumas empresas especialistas não tiveram problemas com cultivo ilegal de “marijuana” entre essas plantações, pois naquele momento da história apenas eles tinham a autorização para cultivar no país. Mas como fazer isso no Brasil, onde existem associações vendendo flores de cannabis (cânhamo ou marijuana) paralelamente a esse cultivo que tende a ser altamente regulamentado? Não acho que seja possível. 

 Leia também: SP tem potencial para cânhamo, diz Secretaria 

Existe um país vizinho nosso que foi o único no mundo a regulamentar o uso adulto e cultivo de cânhamo ao mesmo tempo: o Uruguai. Lá, as flores são vendidas em farmácias, e o governo hoje é responsável pela produção que, uma vez, dependia do narcotráfico. Dessa maneira, nem precisaram regulamentar o cânhamo, pois, com a regulamentação da marijuana feita, o cânhamo não sofre problemas legais para ser cultivado. 

Museu da maconha na Holanda - Foto: Dr. Felipe Neris

Museu da maconha na Holanda – Foto: Dr. Felipe Neris

Na Holanda, conhecida por seus Coffee Shops, o uso adulto está regulamentado desde a década de 70, porém as lojas (pasmem) têm que comprar cannabis ilegal, e, depois que eles adquirem, o uso para de ser um problema de polícia. Ainda assim, os cidadãos holandeses — incluindo eu mesmo — chamam isso de “backdoor problems”. Ao visitar o país, é decepcionante, para um estudioso da cannabis, que quem viva lá não saiba a qualidade do consumo da planta que usam. Se você chegar em um dispensário e pedir “quanto de THC tem essa Amnesia Haze?”, eles falam “não sei.” E, se você pede “tem ideia? Qual tem mais THC e qual tem menos?”, eles respondem “a mais cara tem mais THC.” Outro ponto que me surpreendeu foi quando pedi “como vocês têm controle de qualidade?”, eles: “ninguém quer vender algo ruim pro seu cliente usar e passar mal.” É um tipo de solução, mas nem de longe é a melhor. 

Na Inglaterra, assim como na Holanda, não é comum ver pessoas bebendo álcool nas ruas enquanto caminham, porém o uso de cannabis é feito tranquilamente em frente a policiais, que estão preocupados com problemas que realmente afetam a sociedade. 

De um jeito ou de outro, é certo que a regulamentação do cânhamo, junto com a descriminalização da cannabis feita pelo STF, faz com que a polícia tenha tempo para se preocupar com substâncias mais nocivas. Há de se pensar como a polícia vai distinguir entre o cânhamo e a cannabis. (Spoiler: não tem como). Você pode até usar alguns reagentes pra ver qual é o canabinoide dominante, mas, nesse caso, alguém portando flores do quimiotipo II (THC = CBD) ou uma planta com 14% de CBD + 7% de THC passará ileso a esse mecanismo de regulamentação. Seria necessário usar uma tecnologia específica para fazer uma análise das plantas e seu perfil de canabinoides, porém me parece pouco útil pensar no usuário como um criminoso, não é mesmo? 

 Leia também: Limite de THC em cânhamo preocupa fazendeiros e associações – Cannalize 

Fato é que estamos finalmente evoluindo esse lado como nossos vizinhos e os países ditos “de primeiro mundo” têm feito. Nossa diferença é termos mais de meio milhão de pacientes usando cannabis, centenas de associações e sermos o maior país no mundo no que diz respeito a publicação científica sobre os efeitos do canabidiol. Temos todos os recursos que precisamos para nos tornarmos o maior produtor de cânhamo e pesquisa sobre o tema no mundo! 

 No que depender de mim, tenho feito minha parte para evoluir a ciência em torno disso, longe do charlatanismo e de toda vulgarização do consumo, enquanto aguardamos as cenas dos próximos capítulos. 

 E aí? 

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Felipe Neris

Formado em 2017, atuando como médico generalista desde então, membro e pós-graduando da Sociedade Brasileira de Estudos Canabinoides, membro-fundador AMBCANN (Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia).