“Mesmo legalizada, cannabis nunca perdeu o estigma de droga”, diz diretora da Expocannabis Uruguai

“Mesmo legalizada, cannabis nunca perdeu o estigma de droga”, diz diretora da Expocannabis Uruguai

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As colunas publicadas na Cannalize não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem o propósito de estimular o debate sobre cannabis no Brasil e no mundo e de refletir sobre diversos pontos de vista sobre o tema.​

Em entrevista à Cannalize, diretora geral da Expocannabis Montevideo  falou sobre resistência, rebeldia e muito, muito trabalho

Foto: Divulgação / Expocannabis

Chegou a Expocannabis Montevidéo. De 2 a 4 de dezembro, a capital uruguaia recebe entusiastas canábicos distintos para este encontro que une artes, cultura, política e consciência social e ambiental com muita troca de ideias e diversão.

Em 2022, o evento chega na sua 9ª edição, pretendendo superar a marca de 30 mil participantes e apresentando-se como “a plataforma de informação mais importante sobre cannabis e cânhamo na indústria da América Latina.”

Não é para menos.

Cada vez mais diversa, a Expocannabis se tornou ao longo dos anos parada obrigatória no roteiro canábico latino-americano, muito devido ao pioneirismo em seu DNA. Se em 2013 a cannabis foi legalizada e regulamentada no Uruguai, em 2014 a Expo já estava presente.

E esta presença se mantém ativa e personificada na pele de Mercedes Ponce de León, a mulher por trás do corre.

A uruguaia que não se contentou em apenas vencer a luta pela legalização em seu país e hoje está na linha de frente deste projeto considerado um sucesso no país.

Mesmo com muito a comemorar, Mercedes segue atenta para os novos desafios trazidos por suas conquistas.

Em uma frutífera conversa pelo telefone, a diretora geral da Expocannabis dividiu com a Cannalize um pouco de seus pensamentos sobre o futuro da cannabis no mundo, os entraves da mentalidade proibicionista mesmo diante da legalização, a importância de uma postura de rebeldia e a defesa da natureza como um ecossistema integrado. 

Leia abaixo a íntegra da entrevista

Cannalize: Como a cannabis inspira o seu trabalho e de tantas pessoas unidas por este mercado em expansão?

Mercedes Ponce de León: A cannabis me inspira há muito tempo, a primeira vez foi no plano pessoal, quando comecei a consumir. Eu tinha muito medo, a planta era tida como algo ruim, e quando, para minha surpresa, eu me senti bem, comecei a me desconstruir. Isso me fez investigar, me informar e conhecer melhor a história da planta. Consegui transformar a visão negativa que eu tinha para outra muito mais esperançosa, e daí nasceu minha inspiração. 

A rebeldia também entra nisso, por ver uma entidade tão poderosa ser proibida ou deturpada pelo capitalismo. A cannabis nos dá uma oportunidade de regeneração do planeta, por ter cultivo carbono-positivo, por promover a regeneração do solo, por gerar biomassa, por ter raízes que limpam os cursos de água subterrâneos… então hoje isso é uma grande inspiração no meu trabalho, pois promovemos a educação e a informação sobre esta planta, com projetos que contribuam para o desenvolvimento sustentável de uma indústria que transmute e sobreviva às mudanças que estamos passando.

C: Realmente a cannabis é muito versátil, capaz de mudar positivamente em vários aspectos…

M: Sim, e não somente na saúde que é verdadeiramente potencial, mas é uma planta muito generosa cuja matéria-prima tem aplicação em muitas indústrias. Quando eu comecei a consumir, nem imaginava isso. Mas depois que investiguei, descobri um potencial tão grande que virou meu prazer. Não foi difícil para eu reivindicar essa planta sagrada com potencial para ajudar em muitas áreas da nossa vida hoje.

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C: E como se desassociar dos tabus e preconceitos para demonstrar o potencial econômico e social da cannabis no mundo?

M: A única maneira de sair do tabu é trazer luz para a escuridão, informação para a desinformação. Qualquer pessoa que investiga o porquê as drogas são proibidas percebe que o único resultado [da proibição] é mais drogas e mais guerras. Hoje temos a maior produção de drogas da história, e esse mercado nunca foi tão lucrativo. A guerra é uma ferramenta de controle social através da repressão, militarização e corrupção. 

É uma missão muito importante transmitir essa informação para todos porque estamos atravessando mudanças de paradigmas se tratando de drogas. Então, a única maneira de combater o proibicionismo é informando, e é por isso que trabalhamos, para promover investigações e desenvolvimento científico. Este é o caminho. Já faz nove anos que estamos fazendo isso com a Expocannabis, e este ano vamos cruzar a fronteira e levar eventos com cannabis para outros países, vamos lançar um podcast na expo e muitas outras coisas.

Aqui no Uruguai queremos avançar e vender aos turistas porque o governo já se deu conta de que é importante poder democratizar o uso e não limitar somente aos uruguaios. A idade média dos consumidores no Uruguai subiu de 18 para 20 anos, o que significa que o consumo entre menores de idade está diminuindo.

C: Você está confiante! 

M: Sim! Vamos testemunhar o fim do proibicionismo. A regulação das drogas está se dando não somente por questões de saúde e segurança, mas também porque está se conhecendo o potencial de plantas que, por serem proibidas, nunca foram investigadas a fundo. 

C: Você acha que o Brasil pode encontrar seu rumo neste mercado?

M: O Brasil já é um dos maiores comerciantes de cannabis da América Latina, e vislumbrando um futuro legalizado o Brasil pode ser uma potência, porque é um país rico em tudo, em terra, em população, em recursos e em oportunidades. 

Com certeza a cannabis pode ajudar a regenerar, reflorestar, limpar as águas… e o Brasil tem muito conhecimento e pode nos ensinar a utilizar essa planta de maneira saudável para o ecossistema e, assim, ser um exemplo para o mundo.

Preservar a biodiversidade brasileira é importante para preservar a vida no mundo inteiro. Vocês tem uma missão de preservação da raça humana, e eu desejo de todo coração que vocês saibam aproveitar o potencial da cannabis para reconstruir, regenerar e salvar nossa terra, nossas águas, nossos recursos naturais, nossa cidade e nosso coração. 

C: Agora, em nível global, como você analisa o movimento de revisão legislativa da cannabis por países mais ricos, como Canadá, EUA e Alemanha?

M: As leis mudam à medida que os países se dão conta do potencial de desenvolvimento da indústria, mas, além disso, a mudança geracional que acontece também impacta. Então, devagarinho vai crescendo.

Uma coisa que eu queria deixar claro é que não somente com a regulação a questão muda. É necessário ter cuidado com a implementação destas normas, os processos de mudança de governo, que envolve outras normativas e temáticas que influenciam nas temáticas de drogas. 

Por exemplo, aqui no Uruguai é legal, mas nos últimos anos estamos sofrendo com a volta inesperada de um sistema proibicionista em matéria de drogas que tem muito a ver com a repressão, tanto policial quanto judicial, para os cultivadores. Aqui no Uruguai tivemos uma mudança no código penal, com uma nova lei que fez com que perdêssemos muitos direitos, colocando a comunidade canábica numa espécie de perseguição. 

Mesmo com a regulamentação, ainda há partes turvas, que não estão claras, como o THC, as extrações, ou a venda das sementes e dos alimentos… todas essas questões hoje estão sofrendo perseguição.

Por exemplo: produtores de azeites e derivados e cultivadores sendo presos devido a interpretações proibicionistas da lei, ou então a criminalização feminina em maior escala que os homens, porque segundo a lei todos os crimes que são cometidos dentro de casa e na presença de crianças têm punições maiores. Em geral, as pessoas que trabalham em casa e cuidam das crianças são as mulheres, porque não tem outra opção. São muitas situações, mas elas são as que têm as maiores penas e isso é muito prejudicial para todos, inclusive para as crianças, pois dependem destas mulheres, que são institucionalizadas por muito mais tempo do que qualquer outra pessoa. 

Isso para nós é uma questão muito importante. Não basta apenas regular o mercado de cannabis, é preciso acompanhar a regulação com todo um esquema de políticas públicas antiproibicionistas, porque senão, teremos muita gente que cultiva sendo criminalizada.

C: Você pode explicar melhor como é uma interpretação proibicionista de uma lei permissiva?

M: A lei é votada no parlamento pelos políticos, mas, depois, o poder judiciário decide como se interpreta esta lei nas audiências, caso a caso. 

Então, por exemplo, para o plantio doméstico é necessário ter um registro, e mesmo se você plantar sem registrar-se, não é ilegal, mas sim uma falta administrativa, você leva uma advertência. Você só teria problemas se continuasse plantando depois de advertido, principalmente se houver provas de que você está comercializando. 

Mas agora isso mudou. Com uma interpretação proibicionista, os agentes judiciários já interpretam que se você não está registrado, você é um criminoso, porque está cultivando para comercializar. Interpretam que se você tem mais de 40 g com você – que é o que você pode transportar – você está comercializando, então só com essa posse você pode ir preso, sem nenhuma prova de comercialização. 

A cannabis nunca perdeu o estigma de droga, então a interpretação é que ela é criminalizável. Antes não era assim, isso é uma interpretação recente. É legal consumir, mas não é legal ter, e assim se criminaliza os usuários de cannabis no Uruguai. Outra coisa importante é que em 2020 com a mudança na lei de drogas, todos os delitos de drogas são passíveis de prisão, e não tem como não ir preso.

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C: Então o pioneirismo não é a única palavra-chave para o avanço da cannabis no mercado? Qual é a mentalidade necessária para se manter nesse ramo?

M: O pioneirismo não é a única mentalidade, porque a rebeldia é importante para isso também. É uma inspiração, uma missão. Todo mundo que trabalha nessa temática ativista que militamos, com certeza, não está nela por dinheiro. Estamos comprometidos com esta missão, seja por uma questão profissional ou por uma questão humana, de efervescência interna.

Pra mim [o proibicionismo] é uma injustiça feita com as plantas, porque elas falam através de nós, através dos efeitos que elas causam em nós. Eu sinto que sou uma pessoa que prefere abertamente estar a serviço das plantas sagradas, mesmo que proibidas, para poder oferecer informação que tenha a ver com a crença humana num mundo melhor. 

É uma utopia. Eu acredito muito nessas pequenas ações, dia a dia, que podemos minimamente mudar algo e estou muito feliz, apaixonada e inspirada de fazer um evento como a Expocannabis, que há nove anos surgiu dessa efervescência ativista de trazer informação.

A partir disso, [é gratificante] conseguir criar com meus parceiros uma oportunidade de trabalho que partiu do coração, que eu não estudei para ser, que foi uma coisa que nasceu, que se desenvolveu para se tornar essa plataforma de comunicação que nos inspira em produzir. É algo que sai de dentro do coração, como um trabalho, uma missão, de criar a abundância necessária para viver, já que tenho filhos e preciso trabalhar para sustentá-los.

Me gera muita gratidão poder tirar meu sustento desta planta e deste projeto que não somente me permite desenvolver meu pessoal, mas também é uma plataforma que inspira uma indústria no Uruguai, no Brasil, na Argentina, no Paraguai… Isso me deixa muito contente.

C: Por fim, para você, como a cannabis representa esta força de vontade para agir por um mundo mais justo?

M: A luta pela liberdade da cannabis é a luta por minha liberdade, pela liberdade dos meus filhos. Eu quero um mundo livre, onde seja verdadeiramente possível respeitar as escolhas pessoais de todos em questões que não afetam terceiros, agir pela preservação do planeta e o direito de ser feliz, nos explorar, investigar nossa própria consciência, o que para mim é um direito muito importante.

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