Depois que várias empresas automatizaram o processo a ponto de banalizar o ato médico, o governo polonês extiguiu as consultas on-line
O caso da banalização das consultas de cannabis na Polônia
O setor de cannabis medicinal da Polônia apresentou uma das trajetórias de crescimento mais impressionantes da Europa, mas também uma de suas reversões mais acentuadas.
Como o terceiro maior mercado do continente, reúne todos os ingredientes para um sucesso a longo prazo: regras liberais de prescrição, legitimidade farmacêutica, alta demanda de pacientes e, até recentemente, também um setor dinâmico de telemedicina.
Mas, no final de 2024, houve um obstáculo: uma reação regulatória contra as prescrições on-line eliminou metade do mercado em apenas dois meses.
O que aconteceu não foi uma falha da cannabis medicinal ou da telemedicina, mas uma falha de padrões. E, a menos que outros países aprendam com o exemplo da Polônia na governança de modelos de prescrição digital, poderão enfrentar o mesmo destino.
No cerne do boom da cannabis na Polônia estava uma inovação notável em termos de acesso: plataformas de telemedicina licenciadas que ofereciam consultas rápidas e de baixo custo a pacientes em todo o país. Especialmente em áreas rurais mal atendidas por médicos tradicionais ou entre populações menos propensas a consultas.
Esse modelo, comprovado em outras jurisdições globais, como Alemanha e Austrália, preencheu uma lacuna crucial para pacientes que, de outra forma, talvez nunca tivessem consultado um médico.
“Algumas plataformas eliminaram completamente a etapa de consulta, enquanto outras automatizaram o processo a ponto de banalizar o ato médico”
O modelo funcionava assim: um paciente preenchia um formulário de admissão digital padronizado, frequentemente descrevendo condições crônicas como insônia, ansiedade ou dor crônica.
Um médico, às vezes após uma breve consulta por vídeo ou com base apenas nas informações enviadas, analisava o caso e emitia uma receita. Todo o processo podia levar menos de 30 minutos, e o medicamento frequentemente era entregue ao paciente em poucos dias.
Para muitos, este foi um ponto de virada. Democratizou o acesso ao tratamento e trouxe milhares de novos pacientes para o sistema médico. A Polônia rapidamente se tornou um caso de sucesso em telemedicina com cannabis.
Plataformas como essas foram fundamentais para aumentar a quantidade de flores distribuídas de menos de 100 quilos em 2020 para mais de 4 toneladas até 2024.
O problema não era o modelo digital, mas sim a falta de padrões compartilhados. À medida que mais players entravam no mercado, a qualidade e a supervisão começaram a se deteriorar.
Algumas plataformas eliminaram completamente a etapa de consulta, enquanto outras automatizaram o processo a ponto de banalizar o ato médico.
Esses sistemas, ainda que tecnicamente compatíveis, começaram a atrair o escrutínio não apenas das autoridades, mas também de veículos de comunicação céticos em busca de alvos fáceis no país tradicionalmente conservador.
Por trás do rápido crescimento das vendas na Polônia, houve um aumento igualmente impressionante nas importações de cannabis.
Em apenas quatro anos, as importações oficiais aumentaram de 300 quilos em 2020 para mais de 11 toneladas em 2024. Além das vendas a pacientes, posicionou a Polônia como um destino estratégico para fornecedores internacionais.
Paralelamente, a cota de importação do país vem aumentando constantemente, após reclamações de operadores sobre limites na emissão de licenças de importação, visto que estas nem sempre são cumpridas.
Para 2025, a cota foi dobrada para 20 toneladas, uma meta agressiva que reforça tanto a demanda paciente, o interesse dos fornecedores quanto a confiança regulatória nas perspectivas de longo prazo do setor.
Notavelmente, todo o volume fornecido é importado, visto que o cultivo doméstico continua permitido em instalações aprovadas pelo governo, mas as empresas ainda estão expandindo suas operações.
No final de 2024, porém, os reguladores poloneses intervieram — sem rodeios. Novas regras exigiram consultas presenciais para a maioria das receitas de cannabis, desmantelando efetivamente a infraestrutura digital que havia impulsionado o acesso dos pacientes por quatro anos.
As consequências foram imediatas e severas: de um pico de mais de 73.000 prescrições em outubro de 2024, o volume mensal caiu para 33.000 em dezembro — uma queda de 55%.
Muitos pacientes, especialmente em áreas remotas, viram-se repentinamente sem acesso a tratamento. E as clínicas que operavam dentro da estrutura legal vigente foram varridas por uma reação regulatória abrangente que fazia pouca distinção entre atores responsáveis e oportunistas.
O modelo receptomat atendeu a uma necessidade real e urgente. Mostrou que o tratamento com cannabis pode ser oferecido de forma segura, acessível e em larga escala por meio de meios digitais.
Também revelou o quão subdesenvolvidas as vias tradicionais de acesso permanecem em muitas partes do país. Mas quando a busca por velocidade e escala supera a legitimidade clínica, mesmo plataformas bem-intencionadas correm o risco de consequências indesejadas.
A falta de autogovernança profissional e envolvimento político de qualidade, juntamente com os lockdowns prolongados, minou o modelo de telemedicina da Polônia. Quando a repressão chegou, a oportunidade de moldar o debate já havia desaparecido.
No entanto, a história da Polônia é de resiliência. Em resposta às novas restrições, muitas operadoras se adaptaram rapidamente, abrindo clínicas físicas em grandes cidades e regiões carentes.
Alguns médicos retomaram as consultas telefônicas com procedimentos mais rigorosos, aproveitando as áreas cinzentas das regras atuais. Essas adaptações estão começando a dar resultados: em março de 2025, o volume de receitas havia retornado a 44.000, um aumento de 33% desde dezembro.
O ecossistema polonês de cannabis está lentamente recuperando o ímpeto — não abandonando completamente o acesso digital, mas reconstruindo-o sobre uma base mais sólida e confiável.
A Alemanha está agora em um ponto de virada semelhante. Após a legalização em abril de 2024, a telemedicina liberou o acesso generalizado aos cuidados com a cannabis.
Mas também atraiu críticas de círculos políticos e profissionais, o que não está sendo ignorado pelo novo governo, mais conservador. Alegações de prescrição excessiva, médicos estrangeiros e publicidade agressiva estão começando a ganhar força.
O exemplo polonês mostra aonde isso pode levar se os participantes do setor não agirem primeiro. A abordagem correta não é proibir um modelo de acesso específico, mas sim a profissionalização.
Protocolos clínicos claros, revisão médica independente, transparência… Não se trata de ônus burocrático — são investimentos estratégicos em sustentabilidade.
A telemedicina não é uma brecha, mas um avanço. E continua sendo uma das ferramentas mais poderosas que temos para expandir o acesso à saúde. Mas, como qualquer inovação em saúde, ela deve ser respaldada por padrões claros, responsabilidade clínica e práticas honestas.
As clínicas on-line da Polônia demonstraram a rapidez com que a inovação pode atender à demanda dos pacientes. Agora, o setor tem a oportunidade de mostrar que pode amadurecer com a mesma rapidez.
Se a Europa quiser preservar os benefícios da saúde digital, precisa aprender não apenas com a ascensão da Polônia, mas também com sua correção de curso.
O futuro do acesso à cannabis é on-line — mas também é inteligente, equilibrado e construído para durar.
Texto traduzido do portal CannaReporter
Tainara Cavalcante
Jornalista pela Fapcom (Faculdade Paulus de Comunicação) e pós graduada na FAAP (Fundação Armando Alves Penteado) em Jornalismo Digital, atua como produtora de conteúdo no Cannalize, Dr. Cannabis e Cannect. Amante de literatura, fotografia e conteúdo de qualidade.
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