Quando nos formamos médicos, após seis longos anos de estudo, para conseguir nosso registro de classe, é necessário realizarmos um juramento, o famoso “Juramento de Hipócrates”. Ele, apesar de desatualizado, aborda a essência do ato médico: zelar pela saúde e bem-estar da humanidade. O próprio CFM (Conselho Federal de Medicina) reforça que sua missão é “promover o bem-estar da sociedade”.
Bonito na teoria, porém, na prática, parece contraditório às últimas notas divulgadas em conjunto com a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) contra a descriminalização da maconha no Brasil.
Na nota, publicada no contexto da votação pelo STF (Superior Tribunal Federal), o CFM e a ABP reiteram sua posição contra a descriminalização da maconha. Mas não só isso, os órgãos que deveriam servir à população e zelar pelo seu bem-estar, amparados pela ciência, se posicionam sem quaisquer argumentos que embasam suas falas e se atrapalham na compreensão do que é “descriminalizar” – e dos bons exemplos que temos pelo mundo de países que adotaram tal medida.
A votação do STF, apesar de ser importante e trazer um grande avanço para a nossa sociedade, ainda não aborda a legalização.
Ou seja, o ato de portar ou consumir a plantinha deixaria de ser visto como crime, porém, todo o processo para regulação da produção e comercialização da substância ainda estaria nas mãos do tráfico – se falarmos do uso “adulto” – ou da indústria farmacêutica – ao abordarmos o “uso medicinal”.
Logo, o entendimento das entidades de que a descriminalização traria um aumento no consumo não faz o menor sentido.
A descriminalização traria, na verdade, a diferenciação entre usuários e traficantes. Nos países que descriminalizaram, como Portugal, ainda que críticos à medida tenham previsto um cenário de explosão no consumo, essas previsões jamais se concretizaram.
Além disso, como o próprio Alexandre de Moraes expôs de forma tão certeira em seu depoimento durante a votação do STF, o status quo atual da cannabis, na verdade, é o que favorece o narcotráfico e coloca a saúde individual e pública em risco.
Mas, infelizmente, isso não vai mudar com a descriminalização. Descriminalizar traria muitos ganhos para a nossa sociedade, principalmente em um país onde a Lei das Drogas é o principal vetor de prisões.
Agora, pensando em políticas para diminuir a força do tráfico e reduzir os riscos do consumo da cannabis, a legalização é que deveria ser debatida.
O fato é que o CFM e a ABP parecem ignorar que usuários de cannabis existem. E há muitos motivos para tal existência, as pessoas consomem maconha para relaxar, aliviar dores, diminuir ansiedade, ter um momento de descontração, que se formos parar para pensar, são direitos que tem a ver com a busca pela saúde.
E elas fazem isso, tendo que recorrer ao mercado ilegal para conseguir manter esse consumo e se expondo à riscos devido à ilegalidade. Riscos que poderiam ser evitados caso a plantinha fosse regulamentada.
É o caso da cannabis dita “medicinal”. Hoje em dia, graças aos avanços concedidos pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), temos acesso a produtos à base de cannabis de alta qualidade, que conseguem ajudar diversos indivíduos e tratar patologias, com poucos riscos e efeitos adversos.
Porém, até isso o CFM e a ABP crucificam. E não é a primeira vez. Ambas as entidades, sempre que podem, reforçam um discurso contrário à cannabis. Alegam desde que a cannabis é uma substância que causa risco de “dependência gravíssima”, até que seu uso pode levar a quadros psicóticos não reversíveis. O que bem sabemos, não é verdade.
Os diversos estudos abordando dependência de substâncias são enfáticos ao reforçarem que o risco de dependência de maconha é baixo se comparado com outras substâncias – inclusive as legalizadas, como álcool e tabaco.
Ainda, é um mito a ideia de que a cannabis leva ao desenvolvimento de transtornos psicóticos, como a esquizofrenia. Inclusive, novas pesquisas, publicadas neste ano apontam que o uso de cannabis não está associado a um risco aumentado de desenvolver psicose, mesmo entre aqueles predispostos.
E a despeito de tantos dados científicos, todo ano o CFM e a ABP mantêm o discurso, o qual nunca é visto com medicações alopáticas ou com tratamentos ‘experimentais’.
Não vamos nos esquecer que em plena pandemia, o CFM emitiu um parecer ponderando o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina em pacientes com diagnóstico de covid-19, apesar de uma série de estudos terem demonstrado o equívoco e os riscos por trás dessa aplicação.
E com inúmeros dados equivocados e um discurso tão contraditório àquilo que eles deveriam prezar, fica a dúvida: a quem os órgãos e entidades médicas servem?
As colunas publicadas na Cannalize não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem o propósito de estimular o debate sobre cannabis no Brasil e no mundo e de refletir sobre diversos pontos de vista sobre o tema.
Jessica Durand
Médica graduada pela Universidade Cidade de São Paulo, pós-graduada em Medicina Esportiva pelo Instituto Vita e em Cannabis Medicinal pela Unyleya. Possui certificação internacional em terapias à base de cannabis pela Green Flower. Atleta amadora, enxerga na prática clínica o potencial da cannabis medicinal na qualidade de vida e bem-estar dos pacientes, com foco especial em praticantes de atividades físicas e atletas amadores, semiprofissionais ou profissionais. Compõe o núcleo de medicina esportiva da Gravital, atuou como consultora de assuntos médicos do Atleta Cannabis.
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