No dia 26 de junho, o STF (Supremo Tribunal Federal) finalizou o julgamento que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal e fixou a quantidade de até 40 gramas, ou 6 plantas fêmeas de cannabis como parâmetro para presumir o porte de cannabis para uso pessoal.
Por maioria, o Plenário do STF conferiu interpretação conforme à Constituição ao art. 28 da Lei 11.343/2006, para excluir a incidência do tipo penal à conduta de portar maconha para uso pessoal, estabelecendo que será presumido usuário aquele que adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trazer consigo até quarenta gramas de maconha ou seis plantas fêmeas, além dos critérios legais estabelecidos no art. 28, §2º, da Lei 11.343/06, até que o Congresso Nacional determine critérios legais (não foi fixado prazo).
Trata-se de um grande avanço na tentativa de descriminalizar o uso da maconha, mas o que isso significa? O STF legalizou a maconha? Qual a diferença entre despenalização, descriminalização e legalização? Será que esse avanço trará alguma mudança efetiva? O que mudou para os cultivadores e pacientes medicinais que ainda não possuem o salvo-conduto através do habeas corpus para cultivo medicinal de maconha?
Para entender, é preciso começar do início: A lei 11.343 de 2006, também chamada de Lei de Drogas, é a atual legislação vigente para tratar sobre condutas que envolvem drogas determinadas como ilícitas. Diferente da sua antecessora, a atual Lei de Drogas trouxe como principal mudança a distinção entre porte para consumo pessoal e o porte para tráfico.
A despenalização do porte de drogas, consiste na busca por penas alternativas à privação de liberdade (prisão), o que ocorreu na figura do artigo 28, trazendo, como alternativa ao encarceramento de usuários, a advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Já o crime de tráfico é previsto no artigo 33, podendo o indivíduo condenado cumprir de 5 a 15 anos de reclusão.
Apesar da tentativa de atribuir ao usuário um tratamento diferente do traficante, o que ocorreu na prática foi o contrário. Por conta da ausência de critérios objetivos para distinguir o usuário do traficante, o resultado da Lei 11.343/06 foi do encarceramento em massa de usuários de drogas, principalmente negros, pobres e moradores das periferias.
Visto que a legislação carece de critérios concretos e taxativos para diferenciar o usuário do traficante, são utilizados como indicadores da “traficância” o local do crime, as circunstâncias do crime, a conduta pessoal do indivíduo apreendido com drogas, a forma de acondicionamento da droga e o porte de acessórios, como balança de precisão e caderno de anotações.
É notável que os critérios adotados são subjetivos, visto que ainda depende de uma maior quantidade de provas para poder comprovar com segurança a finalidade que o indivíduo daria para as drogas e eventuais apetrechos que foram apreendidos com ele, pois o que distingue o usuário do traficante é justamente a destinação dos entorpecentes, se seriam para comercialização ou consumo pessoal.
Na prática rotineira da atuação policial, o que ocorre é a presunção da traficância de acordo com o bairro, “classe social” e até da cor da pele do indivíduo. O voto do Ministro Alexandre de Moraes mostra que pessoas brancas flagradas com até 60 gramas de maconha são enquadradas como usuários e pessoas negras com até 20 gramas, como traficantes.
Isso ocorre pois é dado ao policial a chamada “fé pública”, que consiste na absoluta credibilidade atribuída ao testemunho policial. Dessa forma, basta o policial alegar na delegacia que o indivíduo apreendido com drogas é traficante para que ele seja processado e condenado como traficante, mesmo que o indivíduo alegue que é usuário e/ou não sejam produzidas outras provas no processo além do depoimento dos policiais que atuaram no “flagrante”.
Contudo, a credibilidade absoluta do testemunho policial fere totalmente diversos princípios constitucionais e direitos fundamentais, que devem ser estritamente observados na atuação das instituições de justiça e segurança pública.
Visto que a palavra do policial tem um valor probatório superior ao depoimento da pessoa apreendida com drogas, existe uma expressa violação à presunção de inocência, a ampla defesa e o direito ao contraditório.
Na teoria, todos são inocentes até que se prove o contrário, mas já que o agente policial não precisa comprovar a finalidade que seria dada as drogas apreendidas, acaba que quem for preso com drogas possui a necessidade de comprovar que não é traficante, invertendo totalmente o papel de comprovar o crime de tráfico, esse que inicialmente seria da polícia e, posteriormente, do Ministério Público no curso do processo.
Portanto, pode-se evidenciar que nos crimes envolvendo drogas ilícitas, o ônus probatório é totalmente invertido, pois cabe ao flagranteado comprovar a finalidade das drogas que portava ao ser enquadrado pela autoridade policial.
Foi justamente na tentativa de diminuir a discricionariedade e a subjetividade da atuação policial que o STF, no Recurso Extraordinário N. 635659, optou pela descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, fixando como parâmetro limite as 40g ou seis plantas fêmeas.
A descriminalização do porte de cannabis para consumo próprio significa que o porte pessoal, que anteriormente era apenas despenalizado, passa a ser tratado como ilícito administrativo, sendo, portanto, retirado do rol de crimes sujeitos ao controle do direito penal.
Tecnicamente, o artigo 28 da Lei de Drogas, aquele que conceitua o porte para uso pessoal, não poderia ser formalmente classificado como crime e nem como contravenção penal, uma vez que não se enquadra a nenhum dos mencionados conceitos na forma em que definidos pela Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-lei nº. 3.914/1941).
Isso porque, o art. 1º, da referida lei estabelece a infração penal como gênero, do qual são espécies (i) o crime – aquela a “que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa” – e (ii) a contravenção penal – aquela “a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”. E, conforme mencionado, o art. 28, da Lei de Drogas, não traz cominação de pena privativa de liberdade em qualquer de suas modalidades, e nem de pena multa.
A mudança de entendimento poderá beneficiar processos já finalizados, que transitaram em julgado, pois quem foi condenado por tráfico por menos de 40 gramas ou 6 pés poderá ingressar com uma revisão criminal.
A revisão é uma ação penal que busca o reexame de um processo já encerrado. Ela acontece nos casos que se enquadram no artigo 621 do Código de Processo Penal, ou no caso de uma nova jurisprudência ou entendimento pacificado nos tribunais, como já reconheceu o Superior Tribunal.
E é justamente o que ocorreu com a descriminalização do porte, buscando a aplicação do atual entendimento ao seu processo, e, consequentemente, a absolvição das acusações de tráfico de drogas.
Também será possível a realização de mutirões de desencarceramento, realizados pelas Defensorias Pública, através de ações coletivas visando absolver e retirar do cárcere aqueles que se enquadram no limite determinado pelo STF.
Apesar das mudanças positivas da descriminalização, ainda é difícil visualizar mudanças em relação à discricionariedade da atuação policial, visto que o critério de 40 gramas e 6 plantas fêmeas não é absoluto.
Caso o indivíduo for encontrado com drogas abaixo do limite fixado pelo STF, em eventual abordagem policial, ele não será automaticamente presumido como usuário. No voto do Ministro Alexandre de Moraes, ficou estabelecido que quando houver apreensão de quantidade de até 40g de maconha ou até seis plantas fêmeas, o magistrado da custódia deverá analisar as demais provas a fim de chegar à conclusão de que se trata de um usuário e não de um traficante.
Portanto, balanças de precisão e maconha dividida em porções, itens que facilmente um usuário ou um cultivador de maconha pode ter em casa, ainda poderão ser equivocadamente utilizados no processo e indicados como prova da traficância, mesmo sem comprovação efetiva da comercialização, como já ocorre desde 2006.
O cenário é de avanço, mas usuários e pacientes medicinais que não possuem um salvo conduto para cultivar ainda correm o risco de terem suas flores, plantas e extrações apreendidas e em último caso, serem acusados e presos, injustamente, por tráfico de drogas.
O porte e cultivo de maconha para uso pessoal ainda não foram legalizados, a planta e seu consumo ainda continuam proibidas pela legislação, apesar do recente entendimento atribuir um tratamento menos gravoso a tais condutas.
Nesse sentido, é muito importante que os pacientes continuem buscando os profissionais de saúde e advogados especializados em cannabis, visando proteção jurídica ao seu cultivo, pela via judicial do salvo-conduto, através do habeas-corpus para cultivo medicinal de maconha.
Texto escrito por Yan de Carvalho Paixão em colaboração com GCClass
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Dra. Pamela Godoy e Dra. Taís Corrêa são sócias fundadoras do Correa Godoy Advogados, escritório especializado em Direito da Saúde, com foco no Direito Canábico. A frente também do CG Class, uma empresa dedicada a educação Cannabica, são as idealizadoras de cursos e mentorias que contam com o olhar jurídico e apurado de quem tem mais de 10 anos de experiência. Mentoras da comunidade CGCLUB, um grupo jurídico dedicado as soluções jurídicas para os desafios que se apresentam diariamente nessa jornada. Juntas, elas têm como missão garantir o direito à saúde, a livre exploração de atividade econômica, buscando a reparação social da Cannabis, fazendo dessa causa uma motivação diária para atingir todos os seus objetivos.
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