Existe “maconha medicinal”?

Existe “maconha medicinal”?

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As colunas publicadas na Cannalize não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem o propósito de estimular o debate sobre cannabis no Brasil e no mundo e de refletir sobre diversos pontos de vista sobre o tema.​

A expressão “maconha medicinal” ganhou destaque no Brasil a partir de 2014, com a exposição das histórias de famílias que buscavam a cannabis como alternativa terapêutica para seus entes queridos. Sobretudo crianças com síndromes epilépticas graves e resistentes aos tratamentos convencionais.

É do conhecimento de grande parcela da população brasileira a mobilização em torno do uso terapêutico da cannabis a partir dessas histórias de luta, sofrimento e dor. 

Diversos canais de comunicação no país abriram espaços para essa temática e hoje a expressão “maconha medicinal” se consolidou como referência a um produto indicado para o tratamento de diversas doenças.

3 questionamentos para responder a pergunta

  Porém, se olharmos mais atentamente para esse fenômeno, é inevitável que algumas questões sejam suscitadas: 

1. Existe mesmo uma “maconha medicinal”? 

Vejamos: a maconha é uma planta que tem por nome científico Cannabis sativa L., da família Cannabaceae, cujo gênero se divide em três espécies: sativa, índica e ruderalis, que dão origem a centenas de variedades. 

A cannabis é uma planta medicinal, assim reconhecida até pela Anvisa, que a inseriu na lista das DCB – Denominações Comuns Brasileiras pela RDC nº 156, de maio de 2017; e todas as suas variedades têm propriedades terapêuticas. 

Portanto, toda planta da maconha é medicinal. Não há distinção entre as plantas de modo que se possa dizer que há uma “maconha medicinal” e outra “não medicinal”, mas todas as plantas dessa espécie são plantas medicinais.

2. Por que não acrescentamos o termo “medicinal” ao nos referir a outras plantas medicinais? 

Assim como a maconha, há milhares de plantas medicinais utilizadas em todo o mundo, mas por que não nos referimos ao alecrim (por exemplo), como “alecrim medicinal”, ou ao boldo, como “boldo medicinal”? 

Na tentativa de responder a essa questão poderíamos argumentar que isso se deve ao fato de que a maconha, dependendo do uso que se faça dela, pode produzir alterações de consciência, então o uso do termo “medicinal” serviria para distinguir essa forma de uso, do uso social (recreativo), ou mesmo para distinguir o uso de extratos oleosos da planta (uso medicinal) do ato de fumar ou vaporizar as flores (uso recreativo).

Todavia, basta olhar mais atentamente para ver que tais explicações não se sustentam. 

Em primeiro lugar, porque no uso “medicinal” também pode haver alteração de consciência, a depender da necessidade do paciente, e por vezes essa alteração é  bem vinda, sobretudo em pacientes com doenças graves, que afetam muito o humor. 

Em segundo lugar, porque o uso fumado ou vaporizado (sobretudo esse último) também é “medicinal”, sobretudo para pacientes com dor aguda, que carecem de uma ação rápida da cannabis. Até 1938, cigarros de maconha eram vendidos nas farmácias do Brasil.

Se seguirmos essa linha de raciocínio, caberia ainda mais um questionamento: 

3. Já que o termo “medicinal” é usado para distinguir a maconha a partir do tipo de uso que se faz dela (social/recreativo ou medicinal), porque não usamos a mesma distinção para outras plantas das quais se extraem substâncias que são terapêuticas, mas que também podem alterar a consciência, como a uva (ou o caju), por exemplo, que tem propriedades terapêuticas, mas também produz o vinho, que altera a consciência? 

Por que não falamos em uva “medicinal” (ou videira medicinal) para distinguir esse uso do uso social (recreativo) do vinho? Se o problema da maconha é provocar alteração na consciência, por que outras plantas das quais se extraem bebidas alcoólicas não estão proibidas? Já pensou nisso?

Para nos ajudar a encontrar respostas a esses questionamentos, é importante olhar para a história da proibição da maconha no Brasil. É lá que encontraremos as explicações para um comportamento que muitas vezes apenas reproduzimos no presente, mas que têm suas raízes na história. 

E essa história nos conta que a maconha foi proibida no Brasil por motivações racistas e econômicas, com a finalidade principal de manter sob controle a população preta recém-saída do processo de escravização (que na verdade nunca se concluiu no país). 

Assim, quando usamos o termo “medicinal” para nos referir a uma forma de uso da maconha, estamos (por vezes até sem perceber) querendo dizer que há uma forma aceitável de uso dessa planta, mas não por ela mesma, e sim pela parcela da população que está vinculada ao uso “condenável” dela (o uso social/recreativo). 

 Na verdade, o uso do termo “maconha medicinal” é muito mais uma forma de distinguir pessoas do que plantas. E assim mantemos a ideia construída no processo de proibição, de que há usos aceitáveis e outros não, em razão das pessoas que usam e não do que a planta produz. 

De fato, no início do processo de proibição, o tabaco (o fumo) era usado pelos aristocratas brancos e a maconha (fumo), era conhecida como “fumo de negro”. 

A insistência no uso do termo “maconha medicinal” serve para reproduzir essa distinção, mantendo pessoas num lugar de reprovação social, enquanto outras seguem sendo aceitas e bem vistas socialmente. 

Que tal começarmos a mudar essa realidade a partir das palavras? Assim como elas foram usadas para promover o preconceito e a segregação, que tal usá-las agora para promover acolhimento, conhecimento e fomentar a mudança na política de drogas em nosso país? Fica a sugestão!

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