Quão rara é a oportunidade de acompanhar de perto uma produção de haxixe, com matéria vegetal orgânica, de qualidade, cultivada com respaldo judicial para uso terapêutico, e com demonstrações de vários métodos, ao vivo, na cidade de São Paulo?
O que parece uma utopia é a oficina Do Ice ao Hash Rosin, resultado da articulação entre coletivos e empresas, com realização da Overgrow, da associação Cultivando o Bem e do coletivo Girls in Green, que promoveu um curso presencial de dois dias com a maior referência brasileira no assunto: Alice Reis.
Com participantes de vários estados do país, o evento permitiu que o conhecimento das técnicas usadas pela hashmaker na Califórnia, onde vive, fosse aplicado no contexto brasileiro — e que possa ser adaptado por quem extraiu o máximo dessa experiência privilegiada.
Diante de uma plateia majoritariamente composta por pessoas que já cultivam, Alice ensina a primeira e mais importante lição:
a qualidade da matéria vegetal determina a qualidade do seu produto final, e, em uma analogia com a prova do Enem, explica que o sucesso de um cultivo pode ser revelado pelo haxixe feito dele.
“E na busca pelo conhecimento sobre hash”, ela diz, “eu entendi que a planta é o estudo”.
Assim, a hashmaker nos conduz em uma jornada pela história, contando sobre o charas e a relação intrínseca do haxixe com a agricultura — na busca por sementes que perpetuassem a planta, foi descoberta a resina, viva e pura, da maconha —.
Para depois nos fazer lembrar das aulas de biologia, física e química que, hoje, confesso estar arrependida de não ter prestado mais atenção na época da escola.
“A gente começa cultivando a planta e termina cultivando o solo”, comenta um aluno no cerne da discussão teórica proposta na roda, que passou por questões como:
As genéticas mais apropriadas para a produção de haxixe, a nutrição da planta, o controle de indicadores biológicos do ambiente, a maturação de tricomas, o tempo de colheita, a cura e outras sutilezas do cultivo de maconha, que levam ao segundo grande ensinamento dessa experiência: tudo é relativo.
“A planta que você acabou de colher é diferente da mesma já seca ou que passou por um processo de cura”, explica Fernando Göltl, presidente da associação Cultivando o Bem.
ACube, cujo cultivo legal, via salvo-conduto, permitiu a demonstração de técnicas de extração sem solvente, como ice e rosin, aos participantes.
No caso do ice hash, não só o resultado do cultivo, mas a temperatura do ambiente e de todos os materiais usados na extração, a proporção de matéria vegetal para água e para o gelo (que, por sua vez, também tem tamanho ideal).
A escolha e a ordem das bolsas de filtragem, o vigor e a rapidez com que se executam os processos e, obviamente, o que se espera do resultado final.
E em termos de rendimento, pureza e efeitos, são fatores variáveis, que requerem empirismo e adaptações ao que diz a teoria. Em outras palavras, “a prática ensina que a teoria é linda”, reflete um dos alunos.
A peneiragem do ice hash de fresh frozen, parte da secagem do material, não rolou demonstrar, porque a temperatura atingiu 30 ºC em São Paulo — bem longe do ideal para o processo.
“O conceito de autonomia é essencial: aprendam e improvisem, criem estratégias para o contexto brasileiro”, diz a hashmaker.
Para a extração rosin, matéria x temperatura x pressão x tempo formam uma equação cheia de variáveis que determinam cor, cheiro, consistência, rendimento e qualidade do produto final.
“A ideia das oficinas é justamente isso, trazer uma experiência mais real, presencial”, diz Felipe Del Valle, sócio na Overgrow, empresa especializada em itens para extrações sem solventes.
“A gente responde muitas perguntas na internet, e a maioria é sobre coisas práticas. E aí, a pessoa não acha a resposta e acaba não fazendo, ou faz e dá errado, e tem uma experiência ruim. E se isso acontece, leva anos, várias colheitas, para ter vontade de fazer de novo”.
“Na Califórnia, onde rola o hype do ‘solventless’, tem muita gente consumindo um produto cheio de solvente, o live resin, pensando ser live rosin, e por isso a terminologia importa tanto”, conta Alice. “O Frenchy [Cannoli] dizia que o real live resin, a resina viva mesmo, é o charas”.
Nomes intencionalmente semelhantes e questões estéticas são estratégias para confundir o consumidor final no mercado regulamentado dos EUA, e já que as aparências enganam, fica aí outra lição:
Nem sempre a cor é sinal de qualidade de um haxixe. “A onda agora são os produtos de coloração mais clara, mas isso não significa que os que passaram por um processo de oxidação sejam inferiores”, explica Alice.
De qualquer forma, existe uma técnica rápida para avaliar a qualidade geral de amostras de qualquer tipo e procedência de haxixe, do preto-uva ao puro creme. É o teste do isqueiro:
Se uma pequena amostra derreter em contato com a chama, é um bom sinal. Caso queime ou pegue fogo, já sabe. “No ice, se o isqueiro estalar, podemos inferir que tem água no material e que o processo de secagem não foi adequado, por exemplo”.
Um setup que à primeira vista parece improvisado, com caixas e baldes de plástico, mangueiras e grelhas de churrasco, revela detalhes que devem ser cuidadosamente planejados quando se pensa em fazer ice hash.
“A lavagem do hash não pode ser feita de uma hora para outra, requer certo planejamento”, conta Felipe Del Valle.
Embora alguns materiais sejam facilmente encontrados em lojas de jardinagem, construção e até de cozinha, o fato é que a falta de itens essenciais para o resultado do processo, como as bolsas de extração, a água e o gelo (além da maconha, é claro), e a manutenção de um ambiente refrigerado, que dê estrutura para o que vem a seguir, pode inviabilizar a experiência.
Em termos de investimento, o céu é o limite: equipamentos como a máquina que automatiza o processo de lavagem ou o freeze dryer, usado na secagem de produções de larga escala nos EUA.
São sonhos de consumo e podem custar dezenas de milhares de dólares, assim como um cold room, que seria o ambiente perfeito para a manipulação dessas extrações. “Trabalhe no ideal, mas não trave diante do contexto”, lembra Alice, propondo um paralelo entre a realidade que vive na Califórnia com a brasileira.
“Se eu tivesse que escolher três bolsas de filtragem para começar, seriam a 220 [mícrons], a 73 [µ] e a 45 [µ]”, diz Alice.
“Para a lavagem, não uso máquina, mas um remo de caiaque. Tem gente que usa aquelas batedeiras elétricas, mas só depois das primeiras lavagens”. O improviso é o toque do artista. “Entendendo a engenhoca, dá para ser MacGyver”, brinca.
Acompanhar de perto uma extração com água e gelo é uma experiência indescritível. Mas, vou mentir se disser que não fiquei exausta só de olhar.
E para quem pensa que fazer ice hash é tão delicioso quando degustá-lo, a verdade é que o ofício de hashmaker exige muito conhecimento e preparação física, certo nível de resistência e bastante paciência, com processos repetitivos e de longa duração.
“Vejo um paralelo com o pessoal que trabalha com cozinha profissional”, divide Alice. “Além dos utensílios e da importância das técnicas, tem o esforço físico também”.
A produção do ice hash demanda fisicamente, enquanto o rosin é menos trabalhoso, mas bem minucioso:
As pequenas bolsas de filtragem requerem manicure cuidadosa do material in natura, enquanto o papel siliconado deve receber dobras precisas, como um origami, para evitar vazamentos.
É um processo que pede atenção ao detalhe e força, embora uma prensa industrial de 12 t ajude na última parte.
A coleta, o armazenamento do hash e até sua manipulação durante o consumo também têm seus segredinhos:
você sabia que deve aclimatar os produtos que guarda no freezer frost free para evitar contaminá-los com a água da condensação na hora de usar?
Entre demonstrações práticas, ensinamentos teóricos e causos relacionados ao mundo do haxixe, Alice ensinou à turma conceitos importantes, como a descarboxilação do material: ‘trabalhar o hash’, nas palavras dela.
E compartilhou dicas valiosas, como a de colocar uma amostra (bem embalada!) no bolso traseiro da calça jeans ou dentro do sapato, na sola do pé, para ativar os canabinoides.
E de como usar uma garrafa de vidro e água quente para fazer a famosa Temple Ball de Frenchy Cannoli.
“Temos uma mescla bem legal de público geral e medicinal”, conta Felipe Del Valle. “É uma forma do pessoal do medicinal sair um pouco do preparo com álcool, fazer de uma maneira mais simples, mais barata, e conseguir ter uma medicina com qualidade às vezes até superior”.
Com processos que, por si só, reduzem danos (afinal, nada ali corre risco de explodir como o butano)
E produtos que não levam nada além de matéria vegetal, água e gelo, as extrações sem solventes claramente fazem parte da estratégia de redução de danos no consumo de cannabis.
Além disso, Alice ensinou a importância de utensílios como o chillum, as piteiras e os aparelhos de vaporização para o consumo focado no viés do cuidado.
A alta temperatura do dab, por mais puro que o produto seja, pode machucar seu corpo, além de levar a uma viagem desagradável.
“Fazer esse curso tendo segurança é inexplicável”, diz Alice. Fico com a mesma impressão e, ao refletir, encontro a explicação em um detalhe: a coletividade.
Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul. Com as vagas esgotadas em poucos minutos, o grupo que se reuniu não poupou esforços para ter a chance de ver de perto a demonstração dos processos pela hashmaker que é referência no assunto.
“Eu fico muito feliz por um evento do tipo estar sendo realizado no Brasil, em São Paulo. Cresci em uma zona periférica, do lado de Heliópolis, e convivi com uma realidade que não era agradável de diversas formas pela política de drogas”, conta Fernando Göltl.
E hoje, ter um habeas corpus para me tratar como paciente, e poder fazer um evento deste nível, com demonstração ao vivo, ensinando as pessoas a se medicarem, é muito importante”.
Se, em parte, a experiência é quase o metaverso do Brasil legalizado, o fato é que articulações como essa permitem a criação de redes engajadas e transformadoras.
“Isso faz parte de um movimento de pacientes, usuários, marcas, associações, todo mundo que faz parte do cenário, cada um com seu movimento, e junto cria um contexto mais próximo da legalização”, explica Jorge Mendes, sócio na Overgrow.
E, voltando à primeira lição, embora as condições ideais (climáticas e políticas) para aplicar todo esse vasto conhecimento em hash sejam distantes da realidade brasileira, existem pessoas, com resguardo judicial ou não, produzindo materiais de altíssima qualidade, que permitem que o conhecimento e a cultura das extrações sem solventes floresçam, apesar de tudo, no Brasil.
“Nos três anos que a gente tem de marca, vejo grande evolução da galera em termos de conhecimento, os cultivadores chegando em peso, com alto conhecimento de qualidade da matéria, que é o que faz a diferença, e aí a gente começa a ver que existe espaço para isso, que vale a pena”, Felipe Del Valle.
O rosin exposto na mesa de demonstrações brilhava como uma joia. Aliás, fiquei hipnotizada pelas formas, aromas, transparências, cores e pela infinidade de produtos derivados das cabeças de tricomas da maconha que vi ao longo do fim de semana.
As extrações sem solventes fazem parte de um universo incrível, cheio de nuances, que mistura conhecimento teórico e empirismo, tradição e modernidade, sutileza e força física, além de vários sentidos sensoriais — e um quê de instinto.
O haxixe é uma verdadeira arte, e os hashmakers artistas, detentores deste conhecimento milenar que, apesar de marginalizado, inacessível e desprezado, continua evoluindo nas mãos de quem, como Alice, se dedica a mantê-lo vivo.
Smoke Buddies
Desde 2011, a Smoke Buddies se dedica a produzir e compartilhar notícias relevantes sobre a maconha e a política de drogas, no Brasil e no mundo, e informar pessoas interessadas no tema.
Inscreva-se grátis na nossa Newsletter!
Copyright 2019/2023 Cannalize – Todos os direitos reservados
Solicitação de remoção de imagem
Termos e Condições de Uso