Cannabis medicinal: temos muita convicção mas ainda poucas provas. Questão de tempo?

Cannabis medicinal: temos muita convicção mas ainda poucas provas. Questão de tempo?

Sobre as colunas

As colunas publicadas na Cannalize não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem o propósito de estimular o debate sobre cannabis no Brasil e no mundo e de refletir sobre diversos pontos de vista sobre o tema.​

A maconha, nossa querida planta Cannabis sativa, tem sido utilizada há milênios com diferentes propósitos: medicinal, religioso, recreativo, ritualístico, entre outros.

Me parece inegável hoje que ela é a planta mais importante que possuímos no planeta, seja pela sua importância econômica, cultural, social, religiosa ou política. 

A sua proibição e a tentativa de exterminá-la da face da Terra – que não será tema deste artigo – por si só já demonstra sua importância. 

Por conseguinte, o fracasso de centenas de governos em exterminá-la, considerando o envolvimento das mais poderosas nações nesta empreitada, comprova o quão importante ela é para vários grupos sociais que a utilizam. 

Mas do ponto de vista medicinal, qual é a dimensão real do potencial ou da utilidade da maconha?

Muita Convicção

Quando falamos em uso medicinal de plantas muitos de nós já deve lembrar de nossas avós, que sempre tinham um chazinho milagroso que tirava a dor ou a azia como se fosse com a mão. 

Mas como nossa avó sabia exatamente qual planta era bom para cada sintoma que seus netinhos apresentavam? Ela deve ter aprendido com a mãe dela, e sua mãe com sua respectiva mãe, tia ou avó e assim sucessivamente. 

Obviamente, este conhecimento vem de gerações ou séculos e se baseia em observação de causa e efeito, além de curiosidade. Todas características essenciais para um bom cientista. 

E assim, descobertas vão passando de geração em geração. Temos em todo o Brasil e América Latina, um gigantesco conhecimento e uso de plantas para objetivos medicinais, seja por povos nativos, seja por povos de origem africana, europeia ou asiática. 

Mas por que então quando vamos ao médico dificilmente ele nos prescreve uma planta ou um chá?

Poucos estudos sobre plantas

Senhores, várias teses de doutorado e mestrado, estudos, reportagens, mesas-redondas de congresso e conversas de botequim já tentaram explicar porquê recebemos tão poucas receitas médicas com indicações de chás ou plantas. 

Dentre muitos fatores, alguns são a não inclusão do estudos de plantas medicinais nas grades curriculares dos cursos de medicina, a desconfiança do médico sobre os efeitos das plantas, o não investimento público e privado em pesquisa, desenvolvimento e industrialização destas plantas em medicamentos fitoterápicos, o lobby da grande indústria farmacêutica e uma infinidade mais de razões. 

Aí quero chegar num ponto que me preocupa no que se refere à expansão da cannabis e dos canabinoides como medicamentos no Brasil. 

Regulação lenta

Nosso país vem caminhando muito lentamente – a passos de formiga e sem vontade – na legislação para regulação do uso de derivados da Cannabis como medicamento. 

Agora, em 2022, temos duas marcas nas farmácias, mas até o fim do ano o mercado espera contar com no mínimo 10 produtos de diferentes marcas. 

Porém, estes produtos estão entrando no Brasil com uma permissão provisória de 5 anos para atuar no mercado sem a necessidade de apresentar resultados clínicos de eficácia para qualquer doença. 

Assim, o médico pode prescrever de maneira compassiva para qualquer doença que ele julgue ou saiba que o produto pode ajudar. 

Poucas evidências

Um levantamento atual no Brasil mostra que menos de 1% dos médicos têm conhecimento ou interesse para prescrever cannabis e seus derivados e o primeiro motivo é o desconhecimento sobre as substâncias e sobre o sistema endocanabinoide – sistema fisiológico que nosso corpo possui para produzir substâncias similares às da maconha – que é onde estes fármacos atuam e interagem para produzir efeitos. 

Até aí, tudo ok, pois praticamente ninguém estuda efeitos medicinais da cannabis na faculdade, nem médicos, dentistas, farmacêuticos. 

Mas por outro lado, muitos médicos não prescrevem porque não há evidências robustas que lhes deem garantias que a Cannabis possa funcionar na Depressão, no Parkinson ou Doença de Crohn, por exemplo. 

E estes médicos estão certos, pois há pouquíssimos estudos que demonstrem de forma inequívoca que a Cannabis ou canabinoides, com dose e via de administração (oral, sublingual, fumada) específica podem tratar determinada doença. 

E o que falta para estes médicos prescreverem Cannabis? Faltam ensaios clínicos com qualidade metodológica que comprovem, de fato, que a Cannabis é útil para determinada doença ou sintomas. 

Não é só um produto, mas centenas ou milhares

Atualmente, temos excelentes ensaios clínicos que comprovam que os canabinoides podem tratar epilepsias refratárias, esclerose múltipla e alguns tipos de dor. 

Todavia, para outras dezenas de doenças, há estudos em células (in vitro), em animais (in vivo) ou mesmo estudos clínicos de menor qualidade metodológica sugerindo boas evidências, porém, ainda faltando os ensaios clínicos randomizados controlados por placebo para fechar a história com chave de ouro, gerando total confiança de médicos e pacientes no tratamento. 

O leitor ainda deve levar em consideração quando falamos Cannabis, não estamos falando de um produto, mas de centenas ou milhares, pois há milhares de linhagens diferentes de Cannabis que produzem diferentes concentrações e proporções dos princípios ativos na planta. 

Ou seja, se formos testar Cannabis para depressão, temos que saber o teor de Canabidiol (CBD), de Tetrahidrocanabinol (THC) e de outras moléculas principais que podem afetar o paciente. 

Resumindo, cada produto, cada linhagem, ou marca terá que testar o seu produto numa condição específica, e isto será obrigatoriamente exigido no Brasil para as indústrias manterem seus produtos na farmácia, após aqueles 5 anos de licença temporária.

Comparação com outros países 

Neste momento, cabe uma comparação sobre legislação entre Brasil com outros países, como os Estados Unidos. No país norte-americano a legislação se dá por estado, e cada unidade federativa lá tem sua própria maneira de regular os canabinoides. 

De forma geral, nos estados em que o uso medicinal é permitido, as regras são bastante frouxas, se comparadas com o Brasil. Desde a produção, controle de qualidade até a venda dos produtos. 

Resumindo, em muitos locais o paciente consegue comprar canabidiol até em conveniências de postos de gasolina, ou lugares deste tipo. 

Ou seja, lá qualquer empresa, grande ou de fundo de quintal, consegue colocar CBD no mercado sem muito investimento, porque podem ser vendidos como suplemento e não precisam ser medicamentos. 

Menos investimento em pesquisa

Isto, na opinião de alguns, tem inibido que produtores e indústrias invistam em ensaios clínicos para comprovar eficácia de seu produto. Pois, estes ensaios são longos e caros e por outro lado não são exigidos na maioria das situações, ou seja, não vale o investimento. 

E assim, com menos investimento, acabamos não conhecendo possíveis novos efeitos e utilidades destes medicamentos. Paradoxalmente, se estimula a venda e o uso, mas indiretamente isso tem reduzido a chance de surgirem mais estudos e evidências e com isso, mais vendo e uso.

Cannabis como medicamento

Já aqui na ponta sul da América, estamos caminhando para uma legislação que somente permitirá a entrada de canabinoides como medicamentos, isto é, necessitando aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). 

No Brasil é proibido, e provavelmente seguirá por alguns anos, a adição de canabinoides em suplementos alimentares e vitamínicos. Este perfil de legislação gera enormes entraves para a área comercial e dificulta o acesso do paciente ao medicamento, um mega problema. 

Por outro lado, garante qualidade ao paciente no que se refere à segurança e eficácia, embora seja muito questionável a real necessidade de todo paciente de cannabis apenas utilizar produtos com este grau de pureza qualidade farmacêutica – papo para outra coluna. 

Mas outro fator positivo que a legislação brasileira pode originar, é o impulsionamento da pesquisa clínica com canabinoides, visto que isto será obrigatório para termos estes produtos no mercado daqui a 5 anos. 

Assim, o Brasil poderá ser vanguarda mundial na pesquisa clínica com canabinoides, demonstrando e provando que estes produtos possuem sim eficácia contra a ansiedade, depressão, autismo, Parkinson, Alzheimer, fibromialgia, colite e tantos outros. 

O Ministério da Saúde canadense, por exemplo, sugere uso da Cannabis para quase 40 doenças, mas considerando todo tipo de evidência, desde estudos com animais até estudos grandes e qualificados com pacientes. 

Mais chance para o Brasil, pois o Canadá também não tem produzido a quantidade de pesquisa na área que se esperava dele há alguns anos, também, provavelmente, devido à legislação mais branda para acesso a estes medicamentos. 

E por ironia, ficamos neste paradoxo. Locais onde o acesso aos produtos é facilitado parece inibir estudos qualificados sobre os mesmos, visto que, nestes locais estudos não são necessários para poder vender o produto.

Num futuro próximo, se os atores e players deste mercado no Brasil investirem em ensaios clínicos, como a legislação vem direcionando, deveremos ter muitos resultados comprovando que canabinoides e derivados tratam determinadas doenças com eficácia, colocando nosso país no topo da pesquisa canabinoide clínica e influenciando a prescrição médica em todo o mundo. 

Assim, a Cannabis poderá ter uma história diferente dos chazinhos de erva cidreira ou de espinheira santa das nossas avós, que temos convicção que funcionam, mas por falta de provas, ainda não conseguiram estrelar as receitas dos doutores.  

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