Cannalize Especial Agro: Cultivo de cannabis pelo agronegócio pode ser um tiro no pé?

Cannalize Especial Agro: Cultivo de cannabis pelo agronegócio pode ser um tiro no pé?

Sobre as colunas

As colunas publicadas na Cannalize não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem o propósito de estimular o debate sobre cannabis no Brasil e no mundo e de refletir sobre diversos pontos de vista sobre o tema.​

Seja para o uso farmacêutico, industrial ou até mesmo para o consumo adulto, a demanda pela matéria prima da cannabis pelos consumidores brasileiros é altíssima. Mas, o que falta para cultivar cannabis no Brasil?

Foto: Freepik

Tendo em vista que o Brasil é um dos maiores produtores agrícolas do mundo, seria lógico acreditar que a liberação da cannabis para o cultivo em larga escala saciaria não apenas uma, mas várias necessidades de uma vez. 

As sementes desta planta são nutritivas para humanos e animais, suas raízes regeneram o solo, o caule e as folhas geram fibras têxteis e bioplástico, e das flores se produz o óleo que tanto contribui para a saúde de milhares de pessoas.

Mas será que esta conta fecha? Na ponta do lápis, abrir as porteiras para a produção canábica brasileira baratearia o custo dos produtos finais? 

Este é o dilema que foi debatido durante a palestra “Cannabis: o Ouro Verde do Agrobusiness”, que aconteceu na última sexta-feira (5), durante a segunda edição da Medical Cannabis Fair, em São Paulo. 

Pois bem, não existe uma resposta só.

Alguns dizem que investir em tecnologia seria caro demais, e para recuperar este investimento e baratear o custo dos produtos levaria tanto tempo que vale mais a pena continuar a importar.

Outros acreditam que a importação deixa o Brasil sempre à mercê de outros países, e que desenvolver a tecnologia nacional é garantir a soberania do país.

O fato é que se especula muito sobre os custos de produção, sem atestar conhecimento especializado quanto a produtividade, e enquanto isso, o mercado patina e os lucros escoam para fora do país.

Antes de tudo, pesquisa

Debatedores no Congresso Brasileiro de Cannabis Medicinal. Da esquerda para a direita: Rafael Arcuri, Daniela Bittencourt, Sergio Rocha, Corina Silva e José Rocha. Foto: Lucas Panoni

O engenheiro agrônomo Sérgio Rocha argumenta que é importante levar em consideração a metodologia científica da agronomia brasileira, que é uma maneira específica de estudar para definir as culturas adequadas para cada região. 

Em linhas gerais, significa que não dá pra plantar qualquer cepa em qualquer bioma e esperar um resultado positivo. Sérgio explica:

“O mesmo genótipo da planta quando interage em ambientes diferentes pode apresentar características diferentes. Por exemplo, uma planta que atinge três metros de altura pode gerar grande capacidade produtiva, mas se for cultivada numa região de muito vento, ela não vai resistir e vai tombar, comprometendo toda a produção.”

Mestre e doutorando em melhoramento de plantas, recursos genéticos e biotecnia pela Universidade Federal de Viçosa, Sérgio Rocha foi o primeiro autorizado a realizar pesquisas em território nacional com a planta. Desde 2018, Sérgio mapeia o território brasileiro para definir as regiões com maior potencial de cultivo.

“É o que precisamos fazer para garantir que as plantas sejam produtivas em todas as regiões. Não vai ser a mesma variedade de cannabis que vai atender tanto um grande produtor, que tem boas máquinas e os melhores adubos, quanto um pequeno produtor, que está numa região de poucos recursos.”

Leia também: Cânhamo se apresenta como promessa no mercado agro brasileiro

O agrônomo lembrou que existem várias etapas de pesquisa antes de atestar que é rentável cultivar cannabis no Brasil, e que muitas vezes a discussão sobre o cultivo fica entre setores que não tem conhecimento necessário para garantir produtividade.

“Muito se fala em plantar cannabis no Brasil, mas a conversa é sempre entre os médicos e os advogados… cadê os agrônomos nesta história? Ainda não existem estudos de correlação genotípica, fenotípica, não existem índices de seleção para a cannabis feitos no Brasil. Quando escutamos falar em praticar melhoramento genético, eu me pergunto ‘com que informação?’, porque quem fala isso não está fazendo pesquisa de base.”

Daniela Bittencourt, doutora em biologia molecular e pesquisadora da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) concorda com Sérgio Rocha.

“Se queremos desenvolver o mercado de maneira auto sustentável, precisamos começar organizando a cadeia de acordo com nosso solo, nosso clima e as aplicações potenciais que conseguirmos vislumbrar aqui dentro do Brasil. Temos capacidade e a Embrapa está disposta. Já passou da hora de iniciarmos esta conversa.”

Para Sérgio, foi seguindo esta lógica equivocada que a hidroxicloroquina foi recomendada contra a Covid-19:

“O governo recomendou ‘cloroquina’ sem estudar apropriadamente antes, baseando-se apenas na experiência com situações semelhantes, supondo que se ela funcionava para situações A, B e C, ela também funcionaria para X. Parece que é isso que estão tentando fazer com a cannabis”

Devagar e sempre: Mercado deve se organizar com visão estratégica

Para Rafael Arcuri, advogado e presidente da Associação Nacional do Cânhamo e debatedor convidado da convenção, continuar importando cânhamo pode ser desvantajoso a longo prazo, por atrasar o desenvolvimento tecnológico da agroindústria brasileira.

“É questão de soberania nacional e conhecimento tecnológico. Importar é subsidiar o desenvolvimento tecnológico de países alheios, deixando o mercado brasileiro à mercê de um cenário geopolítico. Estamos ficando atrasados, precisamos de pensamento estratégico.”

No entanto, Rafael admite que o ingresso brasileiro a esta jornada produtiva pode não gerar retornos instantâneos, assim enxergando esta demora com otimismo. Para Arcuri, a vantagem de “entrar tarde no mercado” consiste em aprender com as experiências externas e só aderir ao que deu certo. 

“Entrar depois serve para aproveitar o espaço para desenvolver nossa tecnologia, revitalizando toda a base agroindustrial. Temos um agro extremamente tecnológico e podemos otimizar isso de forma estratégica para o país, não só pensando no ganho da venda da commodity em si. Verticalizar a produção nacional para não depender dos outros e promover nossa produção científica.”

A doutora Daniela Bittencourt concorda.

“A vantagem de estar atrasado é começar com uma cadeia produtiva organizada. Saber como atuar tanto para a produção farmacêutica quanto para desenvolver produtos de alimentação animal, ou fibras têxteis, etc. O agro é um grande impulsionador do nosso PIB, tanto pelo pequeno produtor quanto pelo grande.”

Outros representantes do mercado também acreditam na postura “devagar e sempre”. 

José Rocha, o “Rochinha”, fazendeiro e diretor da Redwood Foundation, e debatedor convidado, dividiu suas experiências como pioneiro na produção de cânhamo em Oregon, nos Estados Unidos.

“Grandes investidores perderam grandes investimentos, porque não tiveram a oportunidade, que o Brasil tem hoje, de se espelhar na experiência externa. Em 2015, muitos produtores norte-americanos entraram desesperadamente no mercado, mas ninguém estudou a fundo a cadeia de produção. Não foi calculado, por exemplo, que em Oregon teríamos três semanas para colher a planta, secar e armazenar, antes que chegasse as chuvas no estado de Oregon, e quando começou a chover, perdemos noventa por cento da colheita.”

Por isso, o fazendeiro defende a cautela.

“Começar devagar é um conselho que ninguém quer seguir. Todo mundo já quer começar ganhando muito. Se você fala ‘comece com 4 acres’, você ouve ‘não, quero começar com quinhentos!’. Temos que conter a vontade de ganhar dinheiro, começar devagar e ouvir os pesquisadores. A cautela em liberar o cultivo parece ruim, mas na verdade é muito boa.”

Corina Silva, também diretora da USA Hemp, complementa o argumento de José, acrescentando que, além das pesquisas, é necessária uma legislação específica para o desenvolvimento e padronização de testes.

Para trazer estabilidade e confiança para produzir, Corina atribui esta responsabilidade ao Estado.

“A obrigação de testagem é do estado maior. No ‘oba, oba’ todo mundo vende tudo, para garantir os lucros e minimizar os prejuízos. Mas não basta vender, temos que saber o que estamos vendendo. Os brasileiros precisam cobrar as autoridades para que todas as etapas da cadeia produtiva sejam resguardadas pela mesma legislação”, alerta a executiva.

‘Conselhão do Lula’ é possibilidade de diálogo

“Conselhão do Lula” reúne 264 representantes, entre eles, ao menos três favoráveis à pauta canábica. Foto: Reprodução/ Agência Brasil

Ainda que lentamente, a regulamentação do uso farmacêutico da cannabis impulsiona um avanço gradual no cenário legislativo brasileiro para este fim. 

No início do ano, expectativas para os avanços da pauta canábica foram geradas devido à nomeação do deputado Paulo Teixeira (PT) para a cadeira de ministro do Desenvolvimento Agrário. Paulo Teixeira foi relator do Projeto de Lei Nº 399, de 2015, a principal via para a  regularização da produção de cannabis no Brasil.

Para além do ministério, a cannabis aparece em outras esferas da legislação brasileira. É o caso de Viviane Sedola, Patrícia Villela Marino e Claudio Lottenberg, que representam a cannabis no Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, conhecido como “Conselhão do Lula”. 

Formado por integrantes de movimentos sociais, setor financeiro, agronegócio, fintechs e mais, o “Conselhão” é supervisionado pelo ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT), que também já se mostrou favorável à pauta.

Leia também: A importação de tecidos de cânhamo é rentável?

Desta forma, os representantes canábicos no Conselhão podem ser a porta de entrada para propostas concretas que viabilizem a construção de políticas públicas de desenvolvimento do tema, assim como demandam os especialistas no assunto.

Os primeiros a se prontificar a contribuir para as discussões foram os pesquisadores Sérgio Rocha e Daniela Bittencourt. Segundo a doutora, “a Embrapa tem condições de fomentar estudos técnico-científicos para garantir as tomadas de decisão.”

Sérgio Rocha lembra que já participou das assembleias que deram origem ao PL 399, conversando com assessores dos relatores.

“A gente pode fornecer dados com embasamento científico. Em Viçosa fazemos pesquisas há alguns anos e temos informações de relevância. Acho que esta troca pode ajudar a oferecer informações com respaldo para que eles tenham segurança nas decisões.”

Os empresários Corina Silva e José Rocha manifestaram interesse em contribuir com suas experiências neste ramo.

“Podemos dividir nossa experiência, onde nós erramos, onde acertamos. É muito mais fácil dizer ‘isso aqui não se faz’ do que tentar de novo e ter a perda”, defende Corina.

Já Rafael Arcuri, presidente da Associação Nacional do Cânhamo, propõe uma oportuna discussão para o Conselho: a integração entre ramos distintos do agro para a abertura do mercado canábico.

“Vários setores da indústria poderiam se beneficiar com a cannabis, mas não estão entrando nesta articulação. O cânhamo é insumo para a indústria de alimentos, por exemplo, para a produção de embalagens. Então deveria haver maior atuação de outros representantes”, argumenta.

 

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