O processo de regulamentação da cannabis é complexo e diversificado, com avanços e retrocessos em diferentes regiões do mundo. Inclusive na América Latina
A regulamentação da Cannabis na América Latina
Embora grande parte da atenção mundial esteja centrada nos Estados Unidos, onde a reclassificação da cannabis domina as manchetes, a situação na América Latina, uma região que tem participado ativamente neste debate, não tem sido muito diferente.
Os altos e baixos políticos que os diferentes países têm enfrentado têm-se refletido na flutuação das políticas públicas em relação à cannabis.
O Brasil deixou para trás um governo conservador altamente restritivo, focado em limitar qualquer tipo de regulamentação que pudesse ampliar o uso da cannabis, deixando um legado que ainda pesa no desenvolvimento do seu mercado.
O país ainda não permite o cultivo para fins comerciais dentro do país, o que tem gerado debates sobre a dependência das importações e o aumento do preço dos medicamentos.
Com o regresso de Lula da Silva, o governo de centro-esquerda está inclinado a flexibilizar as regras, o que poderá posicionar o Brasil como uma potência industrial no mercado global de cannabis.
Em 2023, o mercado brasileiro de cannabis medicinal gerou aproximadamente R$ 700 milhões (cerca de US$ 140 milhões), com um crescimento de 92% em relação ao ano anterior.
Estima-se que mais de 430.000 pessoas usam CBD (canabidiol) para tratar diversas condições médicas. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) autorizou a comercialização de 26 produtos medicinais de Cannabis, entre óleos e extratos, que só podem ser prescritos por médicos e adquiridos em farmácias autorizadas.
Em contrapartida, a Argentina, que nos últimos anos registou progressos significativos na regulamentação da cannabis, pausou este processo desde a assunção de Milei.
Atualmente, tudo parece congelado, em contradição com as promessas do novo presidente de desregulamentar a economia “para libertar as forças produtivas do país”.
As alterações na REPROCANN (Resolução 3132/2024 que introduziu alterações nos mecanismos de controlo e fiscalização do uso medicinal da cannabis) e a recente intervenção da ARICCAME (Decreto 833/2024), acrescentam sinais de incerteza.
Apesar deste contexto, alguns atores do setor, como a Cannava (empresa do Governo de Jujuy), começaram a exportar flores de qualidade farmacêutica para países como Portugal, Alemanha e Austrália.
Também passou a dispensar produtos terapêuticos em suas farmácias (Dispensário Pampa Hemp) na forma de preparações master de espectro total. Apesar destes avanços, a situação geral do setor é de grande incerteza, desencadeando o desânimo dos investidores, pelo que muitas empresas enfrentam dificuldades em sustentar as suas atividades.
Os países considerados os pioneiros na regulamentação da cannabis no continente, apresentam números que expõem a crueza do fracasso dos modelos implementados, devido à falta de vontade política e audácia para desenvolver plenamente este setor em suas economias, limitando o oportunidades de negócios para o setor.
Embora um pequeno grupo de empresas tenha conseguido encontrar nichos rentáveis, especialmente na venda externa de cannabis medicinal e produtos derivados (que totalizam cerca de 40 milhões de dólares), em geral, o setor tem sido condenado a excessiva burocracia, inviabilidade comercial, dificuldades financeiras.
E algumas empresas até encerraram suas operações. O contundente anúncio da saída da AURORA, gigante canadense do país rio Platan, é um sintoma muito claro que o ratifica.
O México, outra das grandes promessas da região, espera que, sob o mandato de Claudia Sheinbaum, seja implementada a reforma adiada para regular o uso recreativo e medicinal da cannabis.
Apesar de o Supremo Tribunal de Justiça da Nação, em 2018, ter declarado inconstitucionais cinco artigos da Lei Geral de Saúde que proibiam o consumo recreativo de cannabis, argumentando que violava o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, a questão tem não foi capaz de passar pelo Congresso com sucesso.
De acordo com um relatório da Endeavor México publicado em 2021, foi projetado que até 2028 o valor da indústria da cannabis atingiria 2.000 milhões de dólares, impulsionado tanto pelo mercado medicinal como pelo uso responsável por adultos.
No Chile e no Peru, onde o uso medicinal da cannabis é legalizado, a implementação tem sido extremamente lenta, com inúmeras restrições e dificuldades na distribuição e acesso dos pacientes.
Grande parte do mercado ainda depende da importação de produtos, o que tem dificultado o crescimento de uma forte indústria local.
Ao mesmo tempo, o mercado ilegal continua a florescer com pouco controlo, enquanto as empresas formalmente constituídas enfrentam regulamentações cada vez mais exigentes.
O Paraguai e o Equador, embora os seus quadros jurídicos permitam o cultivo e a importação de derivados de cannabis para fins medicinais, ainda estão nos estágios iniciais de desenvolvimento em termos de produção local de produtos medicinais.
No entanto, ambos os países fizeram progressos significativos no cultivo e processamento de cânhamo industrial. Empresas como Healthy Grains no Paraguai e Barad no Equador foram pioneiras neste setor, conseguindo exportar mais de 1.000 toneladas de biomassa e produtos derivados do cânhamo para mais de 30 mercados internacionais.
Entre os principais destinos de exportação estão Canadá, Estados Unidos, México, Costa Rica, Brasil, Reino Unido, Holanda, Grécia, Lituânia, Alemanha, República Tcheca e Austrália.
O estatuto da cannabis na Bolívia permanece estritamente proibitivo, tanto para uso recreativo como medicinal.O governo de Evo Morales, ex-líder sindical cocaleiro, concentrou suas políticas na defesa da folha de coca.
O principal argumento de seu governo baseia-se no fato de a folha de coca ter uma raiz ancestral em sua terra, usos medicinais e culturas legítimas.
Mas a cannabis, por outro lado, não faz parte dessa tradição, e a sua legalização poderia aumentar os problemas do tráfico de drogas e afectar a imagem internacional da Bolívia na luta contra as drogas.
Independentemente das particularidades de cada país, a indústria da cannabis na América Latina enfrenta desafios estruturais que retardam o seu crescimento e dificultam a integração de um mercado regional.
Estes desafios comuns, presentes em toda a região, limitam a capacidade da indústria de atingir o seu potencial em termos de desenvolvimento económico e social.
Entre os principais obstáculos estão os atrasos na implementação de regulamentações que, em muitos casos, permanecem enquadradas em processos burocráticos prolongados.
Da mesma forma, há uma falta de formação institucional que dificulta a aplicação eficaz das regulamentações, com uma fiscalização insuficiente que tem facilitado a proliferação do mercado negro e o fornecimento descontrolado de produtos que chegam à população sem qualquer tipo de vigilância sanitária.
Esta situação não só gera concorrência desleal, como também afeta a saúde pública, agrava os riscos para a sua segurança e mina a confiança na indústria legal.
A ignorância médica sobre a cannabis terapêutica e a oferta educacional limitada nas instituições acadêmicas, agravam o acesso a tratamentos seguros e de qualidade.
Atualmente, a prescrição de cannabis medicinal continua a ser uma prática limitada a uma minoria de especialistas. Este déficit na formação de médicos evidencia a necessidade urgente de formar mais profissionais, o que poderia ampliar significativamente sua incorporação como alternativa terapêutica.
Por fim, é fundamental propor um olhar crítico sobre o papel da sociedade civil e as suas dificuldades em articular uma agenda comum em torno da regulação da cannabis.
Este processo tem sido promovido por uma diversidade de intervenientes – incluindo pacientes, organizações de saúde, empresas privadas, ONG e grupos que defendem a descriminalização das drogas – que, em muitos casos, não partilham interesses ou visões unificadas.
A sua heterogeneidade, se reflete a riqueza de perspectivas que também tem gerado contradições que dificultam um diálogo claro e coerente com os responsáveis pela formulação de políticas.
Esta fragmentação permitiu que certos setores tentassem confundir as fronteiras entre o uso recreativo e medicinal da cannabis, utilizando interpretações ambíguas dos regulamentos para forçar cenários.
De uma perspectiva institucional, esta reivindicação não só corrói a legitimidade dos marcos alcançados, mas também põe em perigo o capital político necessário para que estas iniciativas se aprofundem no quadro do debate democrático.
Ao não consolidar uma base de acordos e compromissos de respeito à construção coletiva, as demandas se confundem, o que não só gera desconfiança na opinião pública, mas também prejudica o progresso em áreas críticas como o acesso a tratamentos médicos.
Neste contexto de governação complexa, os excessos que alguns grupos se permitiram e a referida falta de coesão têm sido capitalizados por sectores reaccionários, que encontram neles uma justificação para se oporem com mais firmeza e promoverem políticas mais restritivas.
Concluindo, a indústria da cannabis na América Latina está longe de atingir todo o seu potencial.
A combinação de um ambiente regulamentar confuso, a falta de formação a todos os níveis e a má coordenação entre os principais intervenientes continua a ser um grande obstáculo ao seu desenvolvimento.
Sem uma abordagem mais abrangente e a construção de maiorias políticas que compreendam o potencial e expressem a vontade de avançar, a região corre o risco de ficar para trás no emergente mercado global de cannabis.
Texto traduzido do portal El Planteo
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