Augusto Saraiva vive sozinho em um apartamento na Região Central de Porto Alegre. Atualmente ele anda com um andador, mas já está consciente que em um futuro próximo terá que usar cadeira de rodas.
Contudo, ele encara a condição com leveza e até com humor, afinal, já esteve pior. O aposentado já passou uma parte da sua vida deitado em uma cama sem conseguir sequer levantar o garfo para se alimentar.
O motivo, é uma doença rara e progressiva que descobriu quando ainda era adolescente. Até hoje, o número de casos registrados não passa de 300 no mundo. “Desse número eu não sei te dizer quais pacientes ainda estão vivos”, diz.
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Trata-se de uma condição que impede a produção de enzimas para a produção de energia. Isso faz com que ele sinta fortes dores por todo o corpo, espasmos, rigidez muscular e distonia. Sintomas muito parecidos com a Esclerose Múltipla.
Conforme a doença foi progredindo, as dores começaram a ficar insuportáveis, e os espasmos o fizeram deixar várias atividades, como cozinhar.
Depois de anos, ele encontrou um alívio na cannabis, mas mesmo com a ajuda da Associação Sou Cannabis e um habeas corpus, que dá o direito de plantar, seguir o tratamento não tem sido fácil.
Segundo a Sociedade Brasileira de Patologia Clínica(SBPC), não há um número certo de pessoas com doenças raras no país. A estimativa é que cerca de 3% a 5% das pessoas nascem com algum problema genético. A prevalência sobe para 10% quando diagnosticadas em alguma fase da vida, o que soma alguns milhões de brasileiros.
O Ministério da Saúde destaca que há cerca de 7 mil doenças raras descritas pela medicina, a maioria de origem genética. Contudo, 20% também são causadas por infecções, vírus e degenerações.
Para 95% das condições, não há um tratamento para a condição, apenas cuidados para retardar a progressão.
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Outro ponto, é o fato da existência de poucos médicos que trabalham com condições genéticas. Segundo um levantamento da SBPC, são apenas 150 profissionais especializados em doenças raras em todo o território brasileiro, o que dificulta e muito a vida de quem possui uma condição rara.
Em 2014, por meio da Portaria nº 199, o Ministério da Saúde instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras. Com ela, foram aprovadas as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), com uma política de incentivos financeiros de custeio.
No entanto, na prática, é outra história. Augusto conta que passou por vários médicos, que abandonaram o caso ou diziam que não tinha muito o que fazer. Ele só conseguiu um diagnóstico depois da insistência e pesquisas sobre o assunto.
Aos 14 anos ele foi virado do avesso. À medida que o tempo ia passando, os exames vinham inconclusivos e começou a aparecer médicos dizendo que Saraiva estava mentindo, e outros diziam que era psicológico.
O diagnóstico só veio depois de uma amostra de sangue que precisou ser analisada na Holanda, onde foi feito um sequenciamento genético.
“Eu tenho visto no relato das pessoas que eu encontro no caminho, e vejo histórias muito semelhantes. Mesmo depois de 30 anos, nada mudou. As pessoas continuam submetidas a exames e mais exames”, conta.
O aposentado conta que quando finalmente foi diagnosticado, lá na década de 90, foi um grande feito. Ele achou que um tratamento seria mais fácil, mas não foi.
Todos os médicos rejeitavam o seu caso com a justificativa de que não tinha nenhum tratamento ou se sabia muito pouco sobre a condição e por isso, não tinha o que fazer.
“Os médicos diziam que eu iria viver até os 25, mas eu não aceitava muito bem isso”, completa.
Augusto Saraiva começou a pesquisar por conta própria. Ele começou a estudar biotecnologia, para entender um pouco mais sobre a doença e até fez uma dieta personalizada para auxiliar.
A mudança na alimentação auxiliou bastante e retardou o progresso da condição.
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Mas com o tempo passando, os sintomas ficaram piores e ele sentia cada vez mais dores. Ele chegou a tomar cerca de 27 medicações, inclusive a oxicodona, um remédio quatro vezes mais forte que a morfina.
Os espasmos também dificultavam a sua vida, pois não podia fazer tarefas simples como cozinhar. Ele chegou a cortar o dedo e a barriga por causa da perda de controle das mãos.
Em 2018 ele ficou em um estado semivegetativo e não podia fazer nada sem ajuda.
Em 2007 Augusto Saraiva conta que o seu médico voltou empolgado de um seminário na Califórnia (EUA) com uma novidade, a cannabis. Mas o aposentado se sentiu insultado.
“Era só o que faltava, aleijado e maconheiro?” disse ao médico. “Eu não tinha nem 30 anos e já usava bengala e aprendi na escola que maconha era uma coisa terrível, que ficava burro e construí o meu preconceito com base no que eu vi na escola”, acrescenta.
Contudo, ele começou a ler sobre o assunto em meados de 2015, quando pais de crianças com síndromes começaram a fazer barulho sobre as propriedades terapêuticas da cannabis no Brasil.
Mas Saraiva só começou a usar quando a sua situação já estava extrema. “A morfina parou de fazer efeito e estava tolerante a opioides. O médico que me atendeu estava chorando e eu pensei: ‘to ferrado!’ Liguei pro doutor e ele disse pra arrumar maconha em qualquer biqueira e eu fui”, relata.
Na época, o aposentado não conseguia segurar um copo, por isso, quem o ajudou foi a sua namorada até então. Ela comprava a maconha e também enrolava o “baseado” para ele.
Na primeira vez que experimentou a maconha, Augusto Saraiva passou mal e foi parar no hospital com o coração pulando do peito. Isso porque a maconha em forma de cigarro, geralmente tem concentrações altas de tetraidrocanabinol (THC), substância que causa o famoso barato.
A ciência já mostrou que em doses altas, ele pode piorar a ansiedade, fazendo o coração bater mais rápido e os pensamentos também. Isso pode desencadear casos de ansiedade.
A famosa “bad depois da brisa”, ou “bad trip”, pode vir por causa dele. Aquele ataque de pânico que acelera o coração, atrapalha a respiração e dá uma sensação de morte, é uma manifestação do corpo diante da ansiedade.
Saraiva ligou para o médico e disse o que aconteceu e ainda completou que a maconha não fez nenhum efeito. A resposta do médico foi que ele precisava fumar mais.
“Usava duas bengalas, uma em cada mão. Uns três dias depois de um intensivo de maconha, fui adaptando organismo, e em uma madrugada fui no banheiro e fui de bengala e voltei sem. Fazia meses que eu não conseguia dar um passo sem bengala, uma quantidade alta de THC teve uma ação boa na dor”, relata.
Conforme os dias iam passando, ele parou de usar morfina e remédios para dor. Por outro lado, a maconha não ajudava em nada na rigidez muscular.
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Ele começou a passar em outro médico, que lhe disse que o óleo ideal era com uma concentração alta de canabidiol (CBD), componente que não gera os efeitos psicotrópicos.
“Briguei com a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para ter a minha autorização (de importação) e apertei vários deputados e senadores para conseguir. Também fui para o Uruguai e comecei a fazer o uso do óleo. Ele relaxava a musculatura, mas não fazia nada pela dor, e a quantidade que fazia efeito era muito alta e muito cara”, relata.
Foi então que ele descobriu que precisava de um óleo único, formulado especialmente para ele. Isso porque a cannabis atua pelo chamado Sistema Endocanabinoide, um sistema que ajuda a regular a homeostase, ou seja, o equilíbrio do organismo.
Ele é responsável pela regularização da maioria das funções, como o sistema nervoso, imunológico. Quando uma coisa não vai bem, o sistema libera os chamados canabinoides que ajudam a corrigir o problema.
Canabinoides que podem ser encontrados na cannabis e atuam de forma semelhante aos nossos, como uma espécie de reforço. O CBD e o THC, por exemplo, são canabinoides.
Mas óleos personalizados são desenvolvidos apenas por associações e algumas poucas empresas, que com a ajuda dos médicos, tentam chegar em uma dosagem ideal para o paciente.
“A clínica médica Olhar Verde a praticamente me adotou, pois eu não podia pagar e me atenderam pro bono. Isso fez toda a diferença no tratamento. Depois de nove longos meses de tentativas, sobe a dose, diminui a dose, chegamos em um bom óleo”, completa.
Ao contrário de remédios tradicionais, a cannabis não tem uma fórmula certa. E mesmo quando um paciente consegue encontrar uma dose ideal, mantê-la é bastante difícil e delicado, pois ou a condição pode piorar, exigindo outra concentração, ou um pouco mais de luz que a planta recebe na hora do cultivo, pode aumentar ou diminuir os níveis de canabinoides.
Ele resolveu entrar na justiça para garantir o tratamento pelo sistema de saúde. Não queria plantar, mas garantir o tratamento com o óleo.
“Você tem uma doença rara, incurável, o único tratamento é a cannabis e você pede ajuda para o estado. Eu não pedi para plantar maconha, mas que o meu direito à vida fosse respeitado. Mas o estado jogou pra mim a responsabilidade”, diz.
Assim como na maioria dos casos no Brasil, os advogados recomendavam que ele plantasse em casa antes de pedir a autorização. Mas ele se recusou.
“Se eu pulo uma dose, meu corpo começa a pular e eu sinto dor. Imagina se eu ficar um dia inteiro sem? Eu morro. Imagina se eu for preso? Eu não podia correr o risco”, diz.
Encontrar um advogado que aceitasse os seus termos não foi fácil. Augusto Saraiva tentou até pela defensoria, mas não conseguiu. Encontrou uma advogada disposta a ajudar e que não cobrou nada por isso. A decisão veio no segundo semestre de 2020.
Sem um quintal ele criou uma estufa na sala de estar para cultivar as plantas. Importou as sementes e plantou o que foi determinado pela justiça.
Hoje ele pode ter 20 plantas a cada seis meses e precisa renovar o habeas corpus todos os anos. Mas a sua expectativa é derrubar as duas limitações.
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Por causa da doença progressiva, as doses podem aumentar, por isso ele precisará de mais plantas. “A minha doença não tem cura, por que eu preciso pedir todos os anos para o estado?” , diz
Mas como dito aqui, a cannabis é uma planta muito delicada. Augusto Saraiva gastou 22 mil na empreitada, mas acabou perdendo algumas mudas e hoje, não consegue pagar nem a conta de luz para a estufa funcionar.
O óleo feito pela clínica possui tanto concentrações de CBD quanto de THC. O canabidiol ajuda a relaxar os músculos e o tetraidrocanabinol ajuda na dor. Contudo, o seu tratamento não se resume apenas a isso.
Embora o extrato da planta seja o seu tratamento principal, Augusto Saraiva também precisa seguir uma série de recomendações, como a dieta, fisioterapia e tomar medicações para evitar os movimentos involuntários.
Contudo, devido a pandemia, ele precisou parar com vários tratamentos. O risco de contrair a COVID era muito grande e para ele, fatal. Com isso, ele começou a perder alguns avanços que tinha obtido com a combinação dos remédios e terapias.
Por conta da pandemia, o apoio que ele recebi da família, que o ajudava nas tarefas básicas teve que ser suspenso. Com os pais idosos e a tia que cuida da avó de 90 anos, ninguém poderia correr o risco de contrair a doença, o que o deixou sozinho.
Atualmente ele estuda uma nova ação na justiça para que o plano de saúde ou o SUS garanta um serviço home care.“Estou em uma situação em que estou voltando ao que estava antes da maconha”, diz.
Apesar da portaria que fala sobre doenças raras, conviver com a condição não é fácil, principalmente se tratando de trabalho. Quando ele soube que a doença era progressiva, ele sabia que um dia teria que se aposentar por invalidez. “Eu tive que programar toda a minha vida”, disse.
No trabalho, nunca dizia o que tinha, pois temia não ser compreendido. Sofria calado, até não aguentar mais. Quando disse para o chefe que tinha uma doença rara, foi demitido.
“Todo mundo me disse que 98% dos pedidos por invalidez são negados e eu fiquei apavorado e pensava, como é que alguém vai ter coragem de me negar?”, ressalta.
No consultório médico da previdência, ele mostrou todos os documentos da doença que guardou desde a sua adolescência para garantir. “Eu nunca vou esquecer quando o médico olhou para mim e disse que ia me aposentar, não tinha muito jeito”, complementa.
Por isso ele começou a atuar como ativista e está envolvido na associação Sou Cannabis e se diz a prova viva de que ter só acesso à cannabis não garante um tratamento digno, mas uma atenção integral.
Tainara Cavalcante
Jornalista pela Facom (Faculdade Paulus de Comunicação) e pós doutoranda na FAAP (Fundação Armando Alves Penteado) em Jornalismo Digital, atua como produtora de conteúdo no Cannalize, Dr. Cannabis e Cannect. Amante de literatura, fotografia e conteúdo de qualidade.
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