Dia mundial da Epilepsia: Cannabis, desinformação e dificuldade de acesso

Dia mundial da Epilepsia: Cannabis, desinformação e dificuldade de acesso

Sobre as colunas

As colunas publicadas na Cannalize não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem o propósito de estimular o debate sobre cannabis no Brasil e no mundo e de refletir sobre diversos pontos de vista sobre o tema.​

No dia mundial da epilepsia, a doença ainda é rodeada de preconceito, dificultando a vida dos pacientes.  As complicações aumentam ainda mais quando uma das poucas soluções para 30% deles é cara demais.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 50 milhões de pessoas no mundo têm epilepsia e quase 80% dos casos registrados estão em países de baixa e média renda.

O Neurologista e Vice-presidente da Associação Brasileira de Epilepsia (ABE), Doutor Lécio Figueira, acrescenta que cerca de 70% dos casos têm menor complexidade e respondem de forma fácil ao tratamento, mas a maioria dos médicos não têm conhecimento suficiente sobre epilepsia.

O que faz pais e mães caminharem de um lado para o outro para buscar ajuda para os seus filhos.

Como no caso do pequeno Miguel, hoje com sete anos. Ele foi levado para três unidades de saúde para tentar descobrir a causa de suas crises convulsivas. Até hoje não há um diagnóstico conclusivo.

Foto divulgada pela Kassielli Gattini, uma enfermeira voluntária que ajuda a família

 O menino foi uma criança sem qualquer complicação até os três anos, quando depois de uma febre começou as crises dentro de casa de repente e não parou mais.

Apesar dos médicos suspeitarem que seja Síndrome de Fire, até hoje os médicos não têm um diagnóstico preciso.

A mãe, Thais Sampaio de Almeida, de 27 anos, conta que começou em um dia comum, onde ele teve febre na creche onde estudava. Ela buscou a criança, ele ficou melhor, mas depois o Miguel começou a convulsionar.

Ele teve uma convulsão febril, foi levado ao hospital, mas continuou a ter crises sem parar. Miguel foi levado para o hospital estadual de Bauru, cidade onde mora a família, mas a situação não era boa. “Ele foi induzido ao coma durante dois meses”, conta a mãe.

Sobre a epilepsia

A epilepsia não é uma condição com causa específica, ela pode ser resultado de uma porção de fatores.

 Segundo o Ministério da Saúde, a condição é uma anormalidade na atividade elétrica cerebral, que pode acontecer lesões visíveis ou anormalidades na neuroquímica do cérebro.

Portanto, consiste em uma doença neurológica, que através de descargas elétricas anormais e excessivas no cérebro, geram as crises convulsivas, também chamadas de crises epilépticas.

Ainda há um preconceito enorme em relação à doença, que carrega uma série de desinformações.

Primeiro, é preciso ressaltar que não é uma doença contagiosa, e nem precisa segurar os braços e a língua durante as crises.

Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS), tenha considerado por muito tempo o transtorno mental, ela é uma condição neurológica.

Segundo Maria Alice Susemihl, Presidente da ABE, o ponto de partida para as mudanças vem dos cidadãos.

“Se a sociedade passar a debater mais sobre a epilepsia, será possível a real inclusão de pessoas com doença na sociedade. São campanhas como a da associação, que trazem reflexões, que são capazes de sensibilizar o governo”, diz.

As crises podem provocar danos no Sistema Nervoso Central o que pode resultar em algumas perdas, como a fala e o controle dos membros do corpo. Miguel, por exemplo, não anda mais.

As razões mais comuns são infecções, como traumatismo craniano, acidentes vasculares cerebrais, meningite, mas podem envolver também doenças genéticas ou condições raras, como algumas síndromes.

A doença é comum na infância, podendo afetar aproximadamente 5 em cada mil crianças de 0 a 9 anos.

75% dos casos são tratados com antiepilépticos comuns, onde o paciente pode ficar livre das crises em até cinco anos.

Epilepsia refratária

Em 50% dos casos, já no ano seguinte ao tratamento. No entanto, estima-se que de 20% a 30% das epilepsias sejam refratárias, também conhecidas como de difícil controle.

A estimativa é que afete cerca de três milhões aqui no Brasil. A maioria nos primeiros 10 anos de vida.  Deste número, cerca de 700.000 são refratárias.

Elas são conhecidas por serem resistentes a anticonvulsivantes, o que pode comprometer e muito a vida do paciente.

Miguel teve o chamado Mal Convulsivo. Também conhecido como mal epiléptico ele tem uma taxa de 10% a 15% de mortalidade.

A sua principal característica são crises prolongadas, de até 30 minutos. Estas também são as que mais danificam o sistema nervoso.

Arquivo Pessoal da Thais

Síndrome de Fire

Geralmente, epilepsias refratárias são decorrentes de condições mais raras, como síndromes. No caso do Miguel, a suspeita é que seja Síndrome de Fires.

A condição não é vista com muita frequência. Ela atinge 1 em cada 1 milhão de pessoas, com apenas 70 registros no mundo todo.

O nome é uma abreviação para Febrile Infection-Related Epilepsy Syndrome (Síndrome epiléptica relacionada à infecção febril, em português).

A condição é uma forma grave de epilepsia que afeta crianças comuns depois de um estágio febril.

Segundo a Associação Internacional de Medicina Canabinoide, é a epilepsia numa fase aguda, com um elevado grau de dificuldade para tratamento do estado epiléptico.

Isso faz com que se desenvolva em todos os pacientes um estágio crônico com epilepsia refratária persistente. Os resultados são graves lesões cerebrais e até a morte.

Tratamento difícil

Se até o diagnóstico é complicado, o tratamento é ainda mais difícil. Thais conta que Miguel foi levado para três hospitais diferentes, mas sem muita ajuda. “Ele passou pelo hospital de Bauru, Botucatu e até de Ribeirão Preto”, conta.

Ainda segundo a Associação Brasileira de Epilepsia, o ideal é que pacientes refratários passem inicialmente no Ambulatório Médico de Especialidades (AME) para só depois serem encaminhadas para um hospital, quando não apresentam melhora.

Contudo, não é o que acontece. A quantidade de vagas nos AMEs é insuficiente, o que faz os hospitais ficarem sobrecarregados e o paciente pode não receber o tratamento adequado.

Segundo o Neurologista e Vice-presidente da ABE, Doutor Lécio Figueira, mesmo a epilepsia mais comum e com menos gravidade ainda é um dilema.

 “Cerca de 70% dos casos têm menor complexidade e respondem de forma fácil ao tratamento, mas a maioria dos médicos não têm conhecimento suficiente sobre epilepsia. Nesse sentido, é fundamental treinar os médicos e preparar as UBS para que sejam capazes de atender este público. A Associação Brasileira de Epilepsia já se propôs a ajudar, mas sempre que procura a Secretaria da Saúde, recebe a resposta de que não existe tempo para isso”, explica.

Com um nível maior de epilepsia, Miguel chegou a tomar 14 anticonvulsivantes, mas as crises continuavam sem parar.

A família conta que a única coisa que ajudou a diminuir um pouco as crises foi uma dieta especial receitada por uma neurologista que ficou sabendo do caso.

“O Miguel ainda estava em coma, quando ela disse que lá tinha dieta cetogênica. Com 15 dias ele saiu do estado de mal convulsivo. (…) Ele ficou com várias sequelas e seis meses e meio no hospital, mas saiu do coma”, acrescenta a mãe.

É uma receita antiga, surgiu lá em 1920 direcionada para epilepsia, mas que hoje é muito utilizada para emagrecer.

É caracterizada por um corte radical dos carboidratos, que faz o corpo buscar outra fonte de energia, principalmente a gordura, que curiosamente é o mais consumido na dieta.

Com a nova alimentação, as crises convulsivas do Miguel caíram para 15 por dia.

Contudo, contar com o estado é outra dor de cabeça.

Introdução da cannabis medicinal

Thais começou a participar de grupos e conversar com outras mães de crianças com epilepsia também, foi aí que ela ficou sabendo do óleo extraído da cannabis.

Uma das mães lhe ofereceu um pouco do seu estoque para testar no Miguel. Isso fez com que as crises diminuíssem para três ou quatro por dia.

Faz quatro anos que Miguel toma o óleo da planta, comprado da Associação Abrace Esperança. A entidade é a única no Brasil com o direito de cultivo para a venda.

“Eu comecei a dar por conta própria, conforme eu via que ele não tinha crises e nem efeitos colaterais, comecei a comprar. (…) A gente viu uma melhora, ele firmou o pescocinho e também houve benefícios no corpo todo.” Ressalta.

Foto divulgada pela Kassielli Gattini, uma enfermeira voluntária que ajuda a família

Apesar de servir de ajuda para várias condições, a cannabis ficou famosa por ser eficaz no tratamento de epilepsia refratária.

Em muitos casos, o paciente consegue retirar todos os anticonvulsivos e ficar apenas com a cannabis. Há situações também onde as crises desaparecem por completo.

Eficácia

Isso porque a planta tem o que chamamos de canabinoides, pequenas moléculas que servem de reforço e estímulo aos canabinoides produzidos pelo próprio corpo.

Eles influenciam em várias áreas do corpo, inclusive o Sistema Nervoso Central, modulando as funções neurológicas.

Um canabinoide produzido pela cannabis sativa, o famoso canabidiol (CBD), por exemplo, é capaz de controlar as descargas dos neurotransmissores, o que consequentemente pode reduzir tanto a intensidade das crises como a frequência delas.

A cannabis apresenta uma melhora já nos primeiros meses com poucos efeitos colaterais. Inclusive para síndromes, como condição suspeita do Miguel.

Em 2016 a Associação Internacional de Medicina Canabinoide publicou um boletim com vários estudos sobre o uso do CBD para formas severas de epilepsia infantil.

Em um deles, foi apresentado um estudo feito no mesmo ano,nos Estados Unidos. Como no caso do Miguel, a condição de sete crianças com a síndrome de Fires era bem complicada.

Como esperado, depois que começaram a utilizar óleo, em um remédio usado lá fora chamado Epidiolex, as crianças tiveram uma melhora considerável, tanto na redução das crises quanto na sua intensidade.

A conclusão do estudo é que é possível tratar a síndrome com a cannabis.

Dose baixa

Depois que a cannabis começou a ser prescrita e acompanhada pela médica do Miguel, Thais descobriu que o filho precisaria tomar 32 gotas do óleo de cananbidiol, o que daria dois frascos ao mês.

Os efeitos da cannabis são diferentes para cada um. Para utilizá-la de forma eficiente, é preciso descobrir a concentração e a dosagem correta. Processo que pode levar meses e que precisa ser acompanhado por um médico.

Apesar de uma legislação que aprova a fabricação no Brasil com matéria prima importada, apenas uma empresa tem o aval para produzir.

Contudo, o óleo de CBD da farmacêutica Prati-Donaduzzi custa um valor de dois salários mínimos.

Mesmo a família comprando um óleo mais barato pela associação (R$600,00), o preço continua alto, por isso, segundo a mãe, é inviável comprar dois frascos ao mês.

Na casa deles, apenas o marido e pai da criança, Peterson Samuel da Silva, de 39 anos, trabalha de forma autônoma.

Thais ainda acrescenta que qualquer gasto a mais que ela precise fazer, tem que recorrer a vaquinhas e campanhas.

Matéria Publicada no Jornal da Cidade de Bauru

Por isso, Thais tem a difícil tarefa de dar metade da dosagem de canabidiol.

Há a possibilidade de entrar na justiça para o custeio pelo estado ou pelo convênio médico. Os processos geralmente são demorados e a medicação é fornecida por um tempo considerado curto pelos pacientes.

A família tem receio de entrar com este tipo de ação e ficar na mão. O leite da receita cetogênica, por exemplo, é fornecido pelo estado, mas frequentemente é entregue em quantidade reduzida.

 “As convulsões não esperam e você entrar na justiça, principalmente com um óleo que vem de fora e um governo que fornece quando ele quer”. Complementa a mãe.

Canabidiol no SUS

Até agora, o sistema de saúde pública tomou pequenos avanços para pacientes com epilepsia. Como por exemplo, a incorporação de medicamentos como o Levetiracetam e uma cirurgia chamada Terapia VNS que ainda não foi incorporada.

Há também uma consulta pública para a incorporação do canabidiol da Prati-Donaduzzi no Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, o valor seria de, pelo menos, R$80 milhões.

A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) já se mostrou contrária. Para o Dr Lécio Figueira da ABE, o motivo é o alto custo.

 “O Canabidiol tem se mostrado útil para o tratamento de algumas pessoas que têm epilepsia, especialmente crianças que têm síndromes específicas como Dravet e Lennox-Gastaut, porém, tratamentos com este, tem custo superior em relação a outras medicações”, explica.

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