De flanelinha a advogado Antiproibicionista

De flanelinha a advogado Antiproibicionista

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As colunas publicadas na Cannalize não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem o propósito de estimular o debate sobre cannabis no Brasil e no mundo e de refletir sobre diversos pontos de vista sobre o tema.​

Prazer, sou Erik Torquato

De onde vim, onde estou, pra onde vou. Foram estas as reflexões despertadas por este início de parceria com o Grupo Cannalize. Receber e aceitar o convite para ser colunista desta iniciativa jornalística, que acredito muito em razão da qualidade e potencial, foram muito mais fácil do que cumprir o primeiro desafio proposto: escrever sobre mim mesmo.

Isto porque, mais do que um currículo, a reflexão sobre a própria trajetória pode levar a lugares já não habitados e experiências que fizeram parte de minha história, mas que por sorte são experiências apenas parte do passado.

De toda forma, será interessante contar por aqui um pouco sobre mim. Assim, espero possibilitar a você entender um pouco do meu lugar de fala. Tenho certeza que a compreensão dos meus textos futuros fará mais sentido à medida que me conhecerem um pouco melhor.

E a partir de qual ponto iniciamos nesta história? É difícil definir ao certo um marco para ser aqui narrado.

Mas hoje me proponho a contar como eu, ex-flanelinha, me tornei um advogado ativista antiproibicionista. Também como superei o medo de passar fome e como passei a sonhar com o fim da guerra às drogas no Brasil. O caminho é longo, mas vamos lá.

Começo esta história em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. Meu primeiro endereço foi “Rua da Lama, Vila Cocô, Casa 3”, assim conhecido pelos transbordamentos dos valões de esgoto após chuvas e temporais.

Foi por ali, com pés descalços, que me inseri no mercado de trabalho destinado aos sem-oportunidades: não teve inglês ou aula de música, foi olhando carros que passei a maior parte de minha infância e início de adolescência.

O pouco dinheiro servia para pôr comida em casa, pois nesta época meu pai, ex-policial militar, estava desempregado. Com uma merreca que sobrava, jogava fliperama e ia aos primeiros bailes funks que conheci.

Apesar das dificuldades uma coisa era certa em minha família: a hora de ir para a escola era sagrada. Arrumado para aula, às vezes via vizinhos de mesma idade que ficavam atrás de pipa e futebol o dia todo. A vida parecia muito mais atraente fora da escola, mas foi pela insistência de meus pais que hoje não parei por lá, na Rua da Lama.

Enquanto ia mal na escola (mas ia), meus amigos evoluíam na arte das ruas: pichação e maconha passaram a ser o auge da diversão. E eu lá, de fora, querendo aquela vida.

Até que um dia a diversão de fumar e pichar muro se tornou uma sentença. Acordei e vi colado no poste uma lista com o nome de meus amigos jurados de morte pela milícia. Por pichar e fumar.

Muitos de fato morreram, outros tiveram que fugir. Meu nome não estava lá, agradeço muito isso à minha mãe.

E o tempo passou e concluí o ensino médio, aos 17 anos. Com currículo fraco de escola pública, já acumulava muita experiência profissional: vendedor ambulante, garçom, trabalhos com tacógrafos e serviços gráficos. Até ali nada indicava a história que passaria a construir.

O que mudou minha trajetória foi à centelha acesa por um primo que me levou na sua festa como calouro de uma universidade. Nunca havia pensado em ensino superior e estava ali, querendo aquela vida de estudante.

Foi também ali que vi pela primeira vez o uso de maconha totalmente desvinculado da marginalização. Não tive medo. Fumar maconha parecia algo comum e aceito. Eu queria aquela vida de estudante.

Mas como conciliar estudos e trabalho? Foi neste momento que fiz uma aposta: larguei os subempregos e me dediquei à preparação para o vestibular.

Não foi fácil, pois não trabalhar era passar ainda mais necessidade. Mas aí é como Projota fala: “Se o diabo amassa o pão/ você morre ou você come? / Eu não morri e nem comi / Eu fiz amizade com a fome”.

Foi difícil, mas passei no vestibular, me tornando exemplo para meu irmão mais novo. Iniciei o curso de história, mas foi por Direito que me apaixonei.

Passei para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro após muitas provocações de que eu não seria capaz, que deveria estar trabalhando, que lá não seria meu lugar. Passei e fui.

E então, no primeiro dia na faculdade, vi que o caminho seria árduo: estava ali, mas não estava entre iguais.  O primeiro choque foi com meu cabelo, que na época tinha dreads.

Imediatamente, sem que soubessem nada sobre mim, fui taxado de maconheiro. De fato era, mas aquilo já me revoltou, pois senti o peso dos estigmas de origem e classe.  Certo é que não me deixei abater. Pelo contrário, fiz disto uma bandeira e encontrei meu propósito de vida.

No campus da UERJ, estudei muito! Com grandes mestres e muitos livros percebi que a proibição era a principal ferramenta usada na maior parte das violências que eu tinha sofrido e visto acontecer até então.

O estudo da criminologia me mostrou que aquelas experiências ruins que passei e vi acontecer eram fenômenos sociais estudados há anos e explicados a luz da ciência criminal.

Não foi à toa que resolvi então me aprofundar cada vez mais no tema do direito penal crítico. Afinal de contas, a cada página lida e aula ouvida era como se a minha própria vida estivesse sendo revisitada sob um olhar científico. E isto me fascinou.

Não demorei a perceber que a pobreza, a proibição, a violência policial, a sede de vingança que leva o menino pobre a se rebelar, estavam ligados por uma lógica sistêmica produzida a partir de uma política que se materializava na proibição das drogas e na repressão violenta do estado nas periferias das cidades.

E assim, desde as primeiras aulas até os dias de hoje, estou convicto disso. Por isso eu acordo todo o dia pronto para ser uma voz contrária a esse sistema de criminalização pautado na criação de inimigos do Estado quando na verdade é o Estado o inimigo.

E assim, mesmo antes de um diploma, já estava formado como militante. Saído da Rua da Lama, voltei para Nova Iguaçu como um dos organizadores da primeira Marcha da Maconha da Baixada Fluminense.

A partir deste ponto, pela primeira vez sofri ameaça real de morte por defender a legalização. Vários homens armados começaram a rondar a minha casa.

No recém-inaugurado Facebook, já sobravam juras de morte aos ativistas. Apesar do medo, isto não me fez recuar. Fui cada vez mais me envolvendo em coletivos antiproibicionistas que se formavam e enfrentando o sistema da maneira como podia – com baixo medo e muita raiva!

Foi nesta época que também conheci grandes inspirações profissionais que até hoje admiro. Posso dizer que o sensacional André Barros foi meu primeiro mentor.

O primeiro que me apresentou a rotina de um advogado ativista, daquele que vai à linha de frente dos protestos e faz valer o título de defensor de direitos.

Logo em seguida conheci também Emílio Figueiredo, uma das mentes mais brilhantes do mundo da maconha. Por convite de Emílio passei a acompanhar o GrowRoom, onde muitas das maiores discussões jurídicas que hoje dominam o Brasil se iniciaram, tendo sido uma honra acompanhar e contribuir em grandes debates.

Fazendo um salto à frente, também lembro que foi Emílio quem me convidou para integrar a Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas – Rede Reforma em 2018. Mais uma vez, sou grato.

Voltando ao relato, a mente se expandiu. E isso ainda nem era 2010. Uma vez formado o caminho foi certo, advogado criminal. A especialização foi por insistência: se a guerra às drogas era o meu combate, foi trabalhando em casos da Lei de Drogas que encontrei meu caminho profissional.

Do usuário ao traficante, considero que o desafio é provar que a lei está errada! Já pude dizer isto inúmeras vezes e não me canso. Pelas ruas, em casa, no Senado, em meus textos e minhas petições, minha mensagem é esta: as leis e as políticas nacionais estão erradas.

E é com essa bagagem, marcas e cicatrizes que espero poder compartilhar conhecimento, críticas e histórias por aqui. Não tenho a pretensão de ser a voz da verdade. Pelo contrário, quero ser o primeiro a dizer que tenho dúvidas.

Não contei muitas coisas por aqui, mas saibam que tenho a convicção de que há muito que ser feito na luta pela legalização para que garotos pobres e periféricos, como um dia eu fui, não precisem olhar para trás e ver que sobreviveram ao terror da guerra aos pobres por pura sorte, como eu sobrevivi.

É com esse espírito que sigo. Minha luta é esta, minha história segue em frente. Um prazer a todos, eu sou Erik Torquato, advogado antiproibicionista pelo fim da guerra às drogas!

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