Conheça a história de três mães que lutaram pelo direito de plantar cannabis para os seus filhos

Conheça a história de três mães que lutaram pelo direito de plantar cannabis para os seus filhos

Sobre as colunas

As colunas publicadas na Cannalize não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem o propósito de estimular o debate sobre cannabis no Brasil e no mundo e de refletir sobre diversos pontos de vista sobre o tema.​

Neste dia das mães, veja a história de vida de Conceição, Elaine e Risoneide que viram na cannabis medicinal uma solução para a epilepsia dos seus filhos.

Há um ano, elas e outras mães se juntaram para criar um coletivo, chamado “Mães Independentes”, que cultivam a planta de forma legal em seus quintais e depois se reúnem para extrair o óleo.

Todas são da periferia de Pernambuco e cada uma tem um filho especial. Os filhos de Elaine Cristina da Silva e Conceição Corrêa, têm Epilepsia Refratária, que é a persistência de frequência em crises de epilepsia mesmo depois de tratamentos e uso de anticonvulsivantes.

Já Risoneide Araújo tem uma filha de 7 anos com Síndrome de Rett, uma doença rara que também desenvolve epilepsia. Todas plantavam de forma clandestina, pois não tinham condições de importar. Além do mais, nos três casos, o óleo artesanal foi mais eficaz que as outras alternativas.  

Elas vieram de várias associações, mas entendiam que não queriam lobby farmacêutico, e sim plantar e poder fazer o próprio remédio dos seus filhos. “Por isso nos chamamos “Mães Independentes”, pois não dependemos de farmácias e nem associações, não dependemos de ninguém” complementa Elaine.

 O grupo ganhou até um documentário chamado Mãeconheiras no final do mês passado (abril/2020), que teve mais de nove mil visualizações.

Em entrevista ao Cannalize, elas contam como é plantar “maconha” para seus filhos.

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“Eu costumo dizer que hoje eu tenho uma criança em casa”

Elaine é uma delas.  Depois que o seu filho Pedro nasceu, ela descobriu que ele era especial. Tinha Epilepsia Refratária, com cerca de 26 convulsões diárias, e desde então ela passou a viver quase que exclusivamente para o filho. Pedro não emitia sons, não se comunicava por causa do espectro autista e foi dado como cego, surdo e mudo. Os médicos chegaram a dizer que ele não passaria disso.

Quem apresentou a cannabis foi a Conceição em 2015. A sua colega do coletivo, também tem uma criança com epilepsia refratária. Elaine conta que tinha um certo preconceito, só depois de um ano de muitas pesquisas, ela resolveu arriscar.

Os remédios convencionais que o menino tomava o deixava dopado e dormindo o tempo todo, depois que Elaine viu os resultados em outras crianças, como no documentário Ilegal, ela ficou esperançosa.

“Meu filho era um boneco de pano e o médico disse que ele não iria passar disso”

Elaine começou com dois remédios importados, um com concentração de canabidiol (CBD) e outro com Tetrahidrocanabinol (THC). O óleo com THC fez mais efeito, por isso ela até chegou a entrar com uma ação na defensoria pública de Pernambuco para que o estado pagasse a importação, que pode chegar ao custo de mais de 2 mil reais por mês.

No entanto, o óleo que realmente mostrou uma melhora significativa foi o óleo artesanal, também com a concentração de THC maior.

Elaine conta que nas primeiras semanas já viu a diferença. Pedro começou a prestar atenção ao que estava acontecendo ao seu redor, começou a emitir sons, até a chorar; e pela primeira vez, ela o viu sorrir.

“Ajudou também com o controle das crises, ele tinha em torno de 25 a 26 crises diárias, de um minuto. E passou a fazer duas ou três por semana.” disse, Elaine.

Foto: arquivo pessoal

Aprendendo a plantar

No entanto, o óleo de cannabis era muito caro, conversando com outras mães Elaine aprendeu a plantar e começou a cultivar de forma ilegal. Ela morria de medo de ser denunciada, ela queria poder dizer para todo mundo que o seu filho estava melhorando de forma tão progressiva.

Foi através da Marcha da Maconha que elas conheceram algumas advogadas da Rede Reforma, um grupo que dá assistência jurídica para pacientes conseguirem o aval para plantar. Elaine, junto com as outras mães do coletivo, fez o pedido em outubro do ano passado.

“O primeiro saiu em dezembro, o segundo foi o meu, saiu em fevereiro. Eu nem imaginava que fosse tão rápido. Foi maravilhoso, foi o melhor dia das nossas vidas, eu festejei, me emocionei junto com as outras.”

Epilepsia Refratária

A epilepsia atinge 50 milhões de pessoas no mundo, sendo 40 milhões em países em desenvolvimento. Estima-se que morram 50 mil epiléticos por ano de morte súbita e a maioria dos pacientes permanecem sem tratamento, muito frequentemente por causa do estigma em relação a doença.

Na condição de epilepsia refratária ainda é pior, já que os tratamentos convencionais quase nunca dão certo. A cannabis já se mostrou eficaz para estes casos a pelo menos, cinco mil brasileiros.

O benefício da cannabis sobre convulsões não é recente, o primeiro estudo no Brasil sobre o assunto foi feito década de 1970 que já tinha comprovado o efeito anticonvulsivante. No entanto, a planta só começou a ser usada no tratamento de epilepsia efetivamente em 2015.

Hoje, já é possível até substituir a medicação apenas pela solução de cannabis em alguns casos.

Visibilidade

A cannabis para crises convulsivas ganhou visibilidade no país depois da história da pequena Anny Fisher, que usou o canabidiol para uma doença rara de desordem genética, chamada CDKL5 em 2013. Como no caso de Elaine, os tratamentos convencionais não deram resultado e a cannabis foi a solução, reduzindo o número de crises convulsivas que chegavam a 80, para apenas duas por semana.

A história de Anny ganhou repercussão depois do documentário Ilegal, que mostrou a luta da sua mãe Katiele com a importação dos Estados Unidos, onde a cannabis era vendida como suplemento alimentar. Em uma das importações, a cannabis ficou retida na ANVISA e Katiele teve que recorrer na justiça pelo direito de importar.

Foi depois da história da menina, que na época tinha 5 anos ganhar repercussão que a cannabis começou a ser vista com outros olhos no Brasil, inclusive foi o que influenciou na decisão das mães da periferia de Pernambuco.

“Quem me ensinou a usar a maconha foram todas as outras crianças e as suas melhoras”

Conceição usa a cannabis como tratamento para o seu filho desde 2013. O óleo da planta ajuda na espasticidade e estimula inapetência. Ela conta que descobriu os efeitos da cannabis para epilepsia na internet, mais especificamente em grupos de mães com filhos especiais e começou a pesquisar sobre.

Nas suas pesquisas ela também assistiu ao documentário Ilegal e começou a ver muitos relatos de mães que trataram os seus filhos com o óleo de cannabis e melhoraram, logo ela ficou animada. “Quem me ensinou foram todas as outras crianças e suas melhoras” ressalta.

Ela relata que até a equipe médica notou melhoras significativas, como:

  • Desenvolvimento da cognição
  • Desenvolvimento da interação social
  • Aumento de peso
  • Melhora no equilíbrio do tônus muscular
  • Bruxismo
  • Diminuição expressiva das crises de epilepsia.
Foto: arquivo pessoal

Conceição relata que para dar entrada até conseguir o habeas corpus (condição para o plantio), foram apenas três meses, nem ela acreditou que seria tão rápido. No entanto, a lista de documentos e requisitos é bem extensa e o processo é bem burocrático.

São laudos da fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, nutrição, antes e depois da cannabis; Prescrições médicas, documentos de internações. Além de advogado e até um comprovante de aprendizado ou um curso de extração do óleo de cannabis. “É bem complexo, são laudos atrás de laudos” completa.

Governo

Conceição ainda se queixa da forma que as crianças especiais são vistas pelos governantes. Ela comenta uma realidade triste mas comum no Brasil: o abandono paterno. São pelo menos 5,5 milhões de crianças sem o registro do pai no registro e a situação só aumenta quando a criança é especial.

Para ela, crianças especiais são “invisíveis” para o Estado, mesmo que tenham o direito garantido na constituição. Muitas delas têm patologias incuráveis e as consequências são progressivas, mas o governo não avança em questões de acessibilidade, cuidados maiores e também na questão dos remédios, como no caso da cannabis.

“As mães Independentes surgem também do abandono do estado, da invisibilidade das mães atípicas e da exclusão do convívio social.” Ressalta.

Foto: arquivo pessoal

Cultivando ilegalmente

Antes de aprender a plantar, Conceição chegou a comprar o óleo, ela já pagou R$450,00 por uma ampola artesanal e chegou até a usar um medicamento da planta importado que custava cerca de 2 mil reais, mas este ela ganhou.

O grupo Mães Independentes é o primeiro da periferia no país a conseguir o habeas corpus. Isso diz muito sobre o acesso da cannabis medicinal pelas classes sociais. O novo produto brasileiro custa mais de dois salários mínimos e o importado também.

Para as mães que não podem pagar, resta o cultivo ilegal. O advogado Erik Torquato, membro da Rede Reforma, ressalta que não é raro pessoas que são denunciadas por cultivar cannabis medicinal e enquadradas como traficantes.

Conceição lembra que muitas mães da periferia vivem do benefício do filho especial. Por isso é difícil manter até a colheita, pois precisa de luz, e todo um cuidado com as plantas, que demoram em média, de três a quatro meses para ficarem prontas para a extração.

“Nós não deixamos de expor as nossas necessidades, vendemos camisetas (…) do meu bolso são R$100,00 e mais R$200,00 de energia. Mas isso nem chega perto do excesso de idas ao médico, do estresse, vale muito a pena cultivar.” Conclui.

“Passei dois anos e meio como traficante”

Rayssa de 7 anos tem uma doença rara, a síndrome de Rett faz com que ela tenha crises epiléticas e os tratamentos convencionais não puderam ajudar. A mãe, Risoneide, como Conceição e Elaine, percebeu que a planta poderia ajudar através do relato de outras mães, que recomendaram o uso.

 Pouco depois de Rayssa começar a fazer o uso da cannabis, Risoneide logo percebeu as melhoras.  “Percebi de imediato a socialização, o controle das crises, controle da ansiedade, insônia, maior contato visual, coordenação motora, concentração.” relata.

A mãe conta que pagava até R$500,00 pelo óleo da planta todos os meses, mas ficava muito difícil manter o alto custo. Por isso, depois que aprendeu a cultivar e extrair o óleo, teve que cultivar dois anos e meio escondida.

Risoneide ressalta que foi difícil até conseguir uma prescrição médica para entrar com o habeas corpus não são muitos os médicos que se dispõe a prescrever, pois o preconceito ainda é grande, outra luta que as mães que utilizam cannabis tem que enfrentar.

“Eu tento mostrar os benefícios as pessoas que julgam, até mesmo nas redes sociais. Falo sobre o nosso coletivo, busco mostrar que a criminalização da maconha é política é racista é muito mais além do que o que foi passado para nós” complementa.

Direito de plantar

Todas as mães do coletivo conseguiram o habeas corpus através de um grupo chamado Rede Reforma, que ajuda juridicamente pessoas a conseguir plantar em todo o país. “Nossa ajuda nem sempre é processual. Atuamos muito na orientação de pacientes e usuários, pacientes, familiares e associações que buscam informações.” Ressalta Erik Torquato, membro do grupo.

A Rede Reforma atua fortemente na busca de salvo-conduto (documento que possibilita o direito ao plantio). Muitas vezes, os membros assinam o habeas corpus e auxilia a Defensoria Pública em processos que a política de drogas seja a pauta.

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Um dos requisitos para o plantio é que não haja remédios brasileiros que possam ser eficazes. No entanto, depois da autorização da ANVISA entrar em vigor em março, uma empresa brasileira já está fabricando um novo medicamento, e ele custa mais de dois mil reais.

E isso pode sair caro para o governo, pois mais da metade da população vive com menos de um salário mínimo por mês e irá recorrer ao custeio do Estado. “O que já está acontecendo é uma onde de judicialização para que o SUS pague pelo tratamento disponível na farmácia, que tanto é limitado quanto caro. Infelizmente custará caro para os cofres públicos o custeio de medicamentos que as próprias autoridades públicas permitiram para venda”, conta Erik Torquato.

Sem contar que uma fórmula não é igual para todos. Elaine por exemplo, usou o canabidiol, mas seu filho só se deu bem com o THC. O Cardiovascular Marcelo Iost Bausells relata que depende da genética, cada ser humano vai se sentir melhor com uma espécie ou com outra.

O jeito vai ter que ser recorrer pelo plantio.

Risoneide destaca que o plano delas é ajudar outras mães que quiserem colocar a mão na terra como elas foram ajudadas.

“Mas muitas mães nos procuram, contam a sua história, a gente lembra de tudo o que passou, para que chegássemos onde chegamos, que dói que machuca, que foram choros de tristeza e hoje são choro de alegria.  Então a gente procura ajudar da forma que pode, mas a gente quer fazer mais.” Conclui Elaine.

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