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Como uma mulher quebra estigmas semeando conhecimento



29/03/2023



“Eu quero poder falar mais do quanto a cannabis pode ser de grande auxílio para a adesão à medicação do HIV”, diz Jennifer Besse, mulher que se dedica a enfrentar os estigmas

Estigma: o mesmo que criminaliza uma planta, encarcerando e negando o acesso da população mais vulnerável a uma medicina milenar, é o que marginaliza, por décadas, as pessoas que vivem com HIV no Brasil.

É contra ele que  Jennifer Besse batalha, conscientizando e informando sobre cannabis e HIV, seja nos seus círculos pessoais, nas redes sociais, em documentários e até em programas de tevê.

A professora de francês de 33 anos descobriu aos sete, na ocasião do falecimento de sua mãe, que viveria com o vírus HIV por consequência da transmissão vertical que ocorreu em seu nascimento.

“Eu nasci em 1989 e descobri o HIV em 1997, quando minha mãe veio a falecer de aids no hospital Albert Einstein, em São Paulo”, conta. “Os meus exames deram positivo e os do meu pai negativo”.

“Eu gosto de falar da diferença da aids e do HIV, que as pessoas não conhecem e precisam aprender”, e continua: “o HIV é o vírus causador da doença aids, que ocorre quando você tem o vírus muito multiplicado no seu corpo, e doenças oportunistas vão aparecendo, como toxoplasmose, pneumonia, tuberculose, e por aí vai”.

Isso significa que quem vive com HIV não necessariamente vai desenvolver e/ou transmitir a doença aids, sobretudo sob tratamento adequado para reduzir a carga viral, estipulada no número de cópias do RNA por ml de plasma.

Mas, é provável que essas pessoas tenham de conviver, desde sempre, com o preconceito e com a falta de informação que cercam o tema – e suas consequências nefastas. “Para mim, o HIV sempre foi sinônimo de marginalização, criminalização, tudo que a gente carrega com a nossa plantinha”, diz.

Processo de cura

Não é só o estigma que une os dois temas que orbitam no universo de Jennifer:a maconha, enquanto ferramenta terapêutica, cumpre um papel essencial para a adesão dela à medicação para o controle do HIV, um desafio pessoal e diário que ela trava, com êxito, há muitos anos – mas, nem sempre foi assim.

“A minha vida inteira eu tive muito problema com a medicação, muito!”, conta. “Primeiro, tem a dificuldade de se conformar. Depois, sempre que você escuta alguém falando daquilo que você tem, é de maneira pejorativa, agressiva, ofensiva. Tudo isso acarretou nas minhas falhas com a medicação”.

Aos 25 anos, Jennifer tinha esgotado todos os esquemas de medicação disponíveis no Brasil para HIV e, com casos recorrentes de pneumonia e uma carga viral de 40 milhões de cópias por ml de plasma (para se ter uma ideia, uma pessoa com HIV indetectável possui 40 cópias por ml de plasma), ela sabia que sua situação era crítica.

“Nessa época, abriu uma pesquisa no Brasil de uma medicação nova, eu fiz o exame e meu corpo reagiria aos componentes do remédio. Então, eu comecei a tomar”, conta. “Foi aí que eu vi que não poderia falhar: se eu não tomasse esse remédio, se meu corpo acostumasse com ele, aí sim era o fim”.

Uso da cannabis

Usuária ocasional de prensado desde os 15 anos, Jennifer também foi percebendo o papel que a maconha desempenhava em prol da sua saúde, sobretudo mental.

“Em 2015, quando surgiu essa história de cannabis medicinal, eu comecei a estudar essa área, e foi aí que eu entendi que tudo que eu fumei dali pra trás, de maneira recreativa, estava segurando a onda de não me deixar cair, ficar pior”, diz. “Meu currículo tem TDAH, tem depressão severa, ansiedade, um monte de coisa, e a cannabis vinha, ainda que da maneira errada, regulando todo meu sistema”.

Com a oportunidade de um novo protocolo de medicação para HIV e com a ajuda da cannabis, tanto para amenizar os efeitos colaterais do remédio como para se manter disposta a aderir ao tratamento, Jennifer levou um ano e meio para ficar indetectável.

“Desde que eu consegui ficar indetectável estou em paz com a medicação, mas falo que a minha paz vem em doses diárias da minha cannabis, que me auxilia em tudo isso”, explica.

“Eu vivo com HIV porque não existe a cura ainda, então ele está dormindo no meu corpo em algum lugar, mas não está aqui”, diz. “Eu posso fazer sexo sem preservativo com meu namorado porque não transmito o HIV para ele, meu filho não vai viver com HIV, eu posso fazer cirurgia, qualquer coisa”.

Semeando conhecimento

“Quero que as pessoas que vivem com HIV conheçam o poder da maconha, porque, ainda hoje, em 2023, existem pessoas morrendo de aids por não conseguirem aderir ao tratamento”, explica Jennifer, que desde 2019 se dedica a compartilhar informações nas redes sociais sobre o HIV e a cannabis.

A busca por conhecimento relacionado ao tema, que começou em 2015, levou Jennifer por um caminho que permite que ela, hoje, plante e produza o próprio remédio à base de maconha.

“Eu comecei a conhecer gente que plantava, me interessei”, conta. “Abri a página Sereia Sathiva para pesquisar cannabis, HIV e Aids. Fiz cursos, conheci muitas pessoas e ver que era possível. Fui atrás de um advogado para ver como que eu fazia para poder plantar”.

Cultivo legal

O salvo-conduto, deferido por uma juíza no mês da conscientização do HIV/aids, em dezembro de 2022, deu a ela não apenas segurança jurídica para o cultivo de cannabis com fins medicinais, mas uma nova ferramenta terapêutica que oferece qualidade de vida e bem-estar.

“Eu me vejo cada dia mais apaixonada por essa medicina, que é milenar mas vive um século de criminalização”, diz. “O processo é terapêutico, desde que você compra a semente. Quando você colhe, põe para secar, faz a extração, não tem explicação”.

E se hoje, com a ajuda da cannabis, ela se dedica a relacionar o HIV à vida, ela também retribui à planta semeando conhecimento e quebrando estigmas.

“Temos que amenizar a criminalidade e a marginalização, tanto da cannabis quanto do HIV e da aids”, e conclui: “Meu apelo é esse: que as pessoas tenham amor, por si, principalmente”.

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