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Histórias Reais

Como a vida de várias pessoas se cruzaram para ajudar outras com a cannabis medicinal



24/11/2022


Com histórias de vida totalmente diferentes, mas a cannabis em comum, sete voluntários se juntaram para facilitar o acesso da cannabis para 1.100 pessoas

Nayara Mazini viu na cannabis a última opção de tratamento para a sua filha, Letícia, de nove anos, que possui uma doença rara. Já Sérgio Biancardi viu a sua avó, que tinha Alzheimer, sair da cama após a introdução da cannabis na sua vida. O farmacêutico Joaquim Almeida sempre acreditou no poder das plantas medicinais e sabia que a cannabis tinha um grande potencial. A psicóloga Berenice Lara, que pesquisa flores há três décadas, também percebeu isso. Amanda Neves é enfermeira e ouviu do médico que o seu sogro não poderia melhorar, o que se provou contrário com a cannabis. O médico Thiago Gomes não precisou presenciar a recuperação de nenhum dos seus parentes e por meio de estudos e evidências científicas para acreditar no potencial da cannabis e prescrever. E o advogado Evaldo Júnior também dedica boa parte da sua vida a pesquisar mais sobre a planta e ajudar outras pessoas. 

Apesar de diferentes, todos eles se uniram com um único objetivo: ajudar outras pessoas a terem acesso mais fácil ao tratamento com cannabis. Hoje, a Associação Abracamed (Associação Brasileira de Cannabis Medicinal) possui 92 médicos cadastrados e atende cerca de 1.100 pacientes em Marília, interior de São Paulo. 

Última opção

Tudo começou com Nayara Mazini. A enfermeira tem uma filha com uma síndrome rara que provoca convulsões. A pequena Letícia começou a ter crises com um mês de vida e isso se perpetuou durante muito tempo. 

Aos dois anos de idade teve uma descompensação das convulsões sendo difícil de controlar e perdeu a fala. Sem som, não mais se expressava e nem chorava porque também teve o comprometimento da modulação de dor. Foram muitas internações em UTI (Unidade de Terapia Intensiva) pois além das convulsões tinha complicações imunológicas que levavam à recorrentes internações por pneumonias de repetição.

Aos 4 anos, Letícia teve uma nova descompensação do quadro de convulsões, quando chegou apresentar quase 140 convulsões em 24 horas, tempo em que foi diagnosticada com a Síndrome de Lennox–Gastaut (SLG). Trata-se de uma condição que corresponde de 1% a 4% das epilepsias infantis, que pode trazer consequências graves.

As convulsões são apenas um dos sintomas. A doença também pode causar alterações na personalidade e no comportamento, além do atraso do desenvolvimento psicomotor e cognitivo.

Por isso, ja bem debilitada e ficando acamada, recebeu o prognóstico de viver no máximo por mais cinco anos.

Leia também: Paciente faz história ao conseguir tratamento com flores pelo plano de saúde

Nayara e Letícia: Arquivo Pessoal

Cannabis como tratamento

Desesperada, Nayara passou a buscar incessantemente alternativas para de alguma forma mudar a situação. E foi aí que soube sobre a possibilidade do tratamento com a cannabis.

Nayara passou por toda a maratona para conseguir o acesso ao tratamento para a filha, importação, aquisição em farmácia e por fim o cultivo doméstico por habeas corpus que permitiu testar variedades de plantas até chegar a planta mais adequada para a situação de saúde da Lelê.

Não só as crises diminuíram, como houve também outras melhoras, como o reforço da imunidade da criança, por exemplo.
“Ela vivia com a imunidade baixa, ía direto para a UTI, mas depois da cannabis, a Lelê não precisou mais tomar antibióticos ou corticoides. Hoje, qualquer problema viral ou bacteriano é tratável com um simples anti-inflamatório”, conta a mãe de Letícia.

Atualmente, a menina não fala, mas anda, vai à escola e está aprendendo a andar em seu triciclo.
“A autonomia não é só dela, mas minha também. Antes, eu não podia fazer mais nada e hoje trabalho, estudo e me tornei pesquisadora nesta área, fiz meu mestrado e curso o doutorado”, acrescenta.

Fazer a diferença

Já para o médico da associação, Thiago Gomes, a sua maior experiência é ver a transformação de vida dos pacientes que ele atende.

“Nesta semana fui visitar a Nayara e vi a Lelê de bicicleta e fiquei muito feliz. Esse é um caso que fez a diferença na vida da crianças e também de toda uma família”, acrescenta o médico.

Mudança de vida

A história do presidente da associação, Sérgio Biancardi, foi semelhante. A sua avó também só saiu da cama após o uso da cannabis medicinal. 

“As nossas vidas se cruzaram por conta disso, de buscar uma solução”, diz. “Nunca iria imaginar isso a quatro ou cinco anos atrás”.

Hoje ele dedica boa parte da sua vida ajudando outros pacientes através da Abracamed.

Cuidar dos pacientes também é científico

O farmacêutico Joaquim Almeida sempre admirou o trabalho do médico Elisaldo Carlini, que também foi seu supervisor de pós-doutorado. O brasileiro foi um dos maiores pesquisadores da cannabis do mundo e o pioneiro em pesquisas sobre o uso da cannabis para o tratamento de epilepsia refratária.

Quando começou a trabalhar na Universidade Federal de São João del Rei, em Minas Gerais, Joaquim resolveu estudar mais sobre a planta. Em 2016, ele chegou a obter uma autorização para cultivar a cannabis por técnicas biotecnológicas, mas estava limitado em suas pesquisas pela falta de material para prosseguir seus estudos.

Foi aí que a história dele se cruzou com a Abracamed.

Durante a pandemia, ele passou a analisar os óleos produzidos pela associação, movimento bastante comum entre as entidades que fabricam o próprio produto derivado da cannabis.

Depois de quase um ano, a Universidade São João Del Rei firmou uma parceria com a instituição para receber o material produzido para ser analisado pelo grupo de pesquisa formado por pesquisadores, alunos de pós graduação e graduação. Entre as propostas, está em avaliação e garantia da qualidade dos produtos da Abracamed.

“Somos anjos de uma asa só. Preciso das outras asas, para juntos podermos voar. Não queremos mais nos separar”, acrescenta Duarte-Almeida. 

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Fazendo história

A história da psicóloga Berenice Lara é bem parecida. Depois de pesquisar flores por mais de 30 anos, a cannabis foi a que mais lhe chamou atenção. 

Principalmente por causa das suas propriedades medicinais no tratamento de Alzheimer, doença que a mãe de Lara enfrenta.

“Ela [mãe de Berenice] começou  a tomar o óleo e, depois de um mês, já tinha um outro quadro. Até as dores constantes na coluna que se perpetuaram durante a vida inteira sumiram”, diz a psicóloga.

“O que estamos fazendo também é pesquisa, é analisar as variedades da cannabis que são mais apropriadas para determinadas doenças. Nós procuramos combinações, variedades da planta que vão servir mais para uma coisa ou para outra”, complementa Lara.

Cuidado personalizado

A diretora executiva geral da Abracamed, Amanda de Souza Neves, também é enfermeira, e juntamente com seu marido possui a autorização para cultivar a medicação para seu sogro, que tem a Doença de Parkinson.

Esta é uma doença neurodegenativa e progressiva, a condição não tem cura, apenas tratamento com medicações que em tese, não melhoram muito os sintomas, mas evitam a progressão da da doença. Os sintomas em geral são tremores, rigidez e dor muscular, lentidão dos movimentos e quando avançada pode afetar a a fala.

“Eu ouvi muitos médicos dizerem que não tinha muito que fazer em relação aos tremores, que as medicações eram apenas para ele não piorar”, lembra. “Mas o meu sogro é lúcido, ele verbaliza, ele percebe como a medicação a base de cannabis age nos tremores, nas dores, no quadro depressivo, na insônia”, afirma a enfermeira.

Por causa disso, ela é adepta das terapias integrativas, que personalizam o cuidado de cada paciente.

“O cuidado é único para cada pessoa, não é só a prescrição, ele precisa entender tudo o que está acontecendo com ele durante o tratamento. ”

Padronização das plantas

Embora a cannabis funcione de formas diferentes para cada pessoa, há algumas substâncias que podem influenciar mais que outras em condições específicas.

O CBD (canabidiol), por exemplo, é mais indicado para crises epilépticas e ansiedades, enquanto o THC (Tetrahidrocanabinol), componente que gera a “alta” da maconha, é mais utilizado para o tratamento de depressão, dores crônicas, Alzheimer e Doença de Parkinson. 

O tratamento dos pacientes é uma prioridade, mas um dos objetivos da Abracamed é fazer história e contribuir para a ciência endocanabinoide

Isso porque as propriedades medicinais da cannabis são relativamente novas. Elas foram descobertas ainda na década de 1970 e precisam de mais estudos. Por outro lado, os pacientes não podem esperar. 

“A maneira de conseguir isso [tratamento], é compartilhar a tecnologia em cima das espécies que conseguimos categorizar. Ao longo de décadas, todo esse esforço será importante para construir evidências das propriedades da cannabis”, acrescenta o presidente da associação, Sérgio Biancardi. 

Família Abracamed/Divulgação

Mais informações, por favor

O que todos os voluntários da associação perceberam é que as informações sobre a cannabis ainda são pouco difundidas.

Todos sentiram grandes dificuldades em buscar o tratamento, o que foi o denominador comum para se juntarem e ajudarem a mudar essa situação. 

Embora a associação só tenha sido formalizada em fevereiro do ano passado, desde 2019 a Abracamed promove eventos na cidade de Marília divulgando informações sobre a cannabis medicinal e como ela pode transformar vidas. 

“Já fizemos até audiências públicas na Câmara Municipal de Marília. A nossa missão é o impacto social”, ressalta Nayara Mazini.

De acordo com Sérgio Biancardi, o objetivo é causar um impacto social e sustentável. “No momento da dor, as pessoas se procuram para se ajudarem.”

Berenice ainda acrescenta que a parceria com os centros de pesquisa é essencial para mostrar na prática o que os dados científicos já comprovaram. “Esse tipo de pesquisa é importante, porque, mais tarde, todos se apropriam, tanto pacientes quanto pesquisadores.”

Veja também: “Os policiais nunca tinham visto um pé de maconha”, diz paciente com permissão para plantio no RN

Preenchendo lacunas

De acordo com o advogado, Evaldo Júnior, a Abracamed foi formada para preencher lacunas. 

Apesar do crescimento considerável da cannabis medicinal no Brasil, o tratamento não é acessível para a maior parte da população.

O óleo importado ou o óleo vendido nas farmácias pode chegar a um custo de mais de dois salários mínimos, em algum casos, apesar de outros, o tratamento já estar mais acessível. 

Entrar na Justiça para obter o direito de cultivar em casa também não é simples, pois envolve advogados e até o risco de ir para a prisão por causa da desobediência civil. 

O plantio orgânico também não é uma tarefa simples, pois envolve entender qual fertilizante comprar, como extrair as substâncias medicinais e até como cuidar das plantas durante todo o ciclo de vida dela. 

O pai do advogado Evaldo Júnior foi o primeiro adulto da cidade de Marília a obter o famoso Habeas Corpus, que dá o direito de cultivar em casa sem riscos de prisão.

“Não sou agrônomo, mas sou obrigado a estudar o assunto para ajudar a associação nesta parte. Muitos pacientes nem sabem que os canabinoides são extraídos das flores e não das folhas”, acrescenta. “A luta é tão grande que todos nós tivemos que adotar outras profissões”, diz o advogado.

Evento

Nos dias 25 e 26 de novembro, a ABRACAMED realiza um grande evento na Universidade de Marília. O II Seminário sobre Cannabis Medicinal do Centro Oeste Paulista: “Ciência, Políticas Públicas e Direitos Humanos”, é gratuito e reúne vários profissionais engajados no ecossistema, como médicos, advogados e pesquisadores que estarão promovendo palestras, rodas de conversa e dialogando com a população.

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Tainara Cavalcante

Jornalista pela Facom (Faculdade Paulus de Comunicação) e pós doutoranda na FAAP (Fundação Armando Alves Penteado) em Jornalismo Digital, atua como produtora de conteúdo no Cannalize, Dr. Cannabis e Cannect. Amante de literatura, fotografia e conteúdo de qualidade.