A estimativa de vida de Ricardo Curvo de Almeida era de apenas dois ou três anos. Ele possui uma síndrome rara chamada Schinzel-Giedion, que o faz ter crises epilépticas de difícil controle desde os seus dois meses.
Contudo, o menino já tem sete anos e raramente tem crises. Segundo a mãe, Jéssica Curvo Pereira (30), o canabidiol (CBD), foi o principal aliado.
O óleo feito com a planta é cada vez mais usado no Brasil, principalmente para tratar crises de epilepsia refratária, que são resistentes a medicamentos. Segundo dados da Agência Nacional de Vigilância, mais de 33 mil pessoas conseguiram licença para importação só nos últimos dois anos.
Desde que Ricardo nasceu, a família já sabia que ele possuía alguma síndrome, mas não sabiam qual. O problema era investigado pelo geneticista da família.
Trata-se de uma condição rara que provoca uma série de problemas, como malformações no esqueleto, obstrução das vias urinárias e atrasos no desenvolvimento.
Jéssica começou a perceber as crises do filho quando ele tinha apenas dois meses. Mas não eram convulsões, as crises dele pareciam espasmos, por isso, a mãe não se preocupou.
A epilepsia é uma doença neurológica, que pode estar presente em algumas síndromes. Através de descargas elétricas anormais e excessivas no cérebro, geram as crises.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) a doença afeta mais de 50 milhões de pessoas no mundo, sendo cerca de 3 milhões aqui no Brasil. A maioria nos primeiros 10 anos de vida.
Apesar da convulsão ser o sintoma mais conhecido, a epilepsia pode se manifestar de outras maneiras, com alterações na consciência ou nas atividades motoras e sensoriais, como movimentos involuntários ou ausência, também conhecida como “desligamento”.
“O médico disse que só faltava convulsões para ter o diagnóstico.(…) Ele mostrou no livro que já tinha os casos do diagnóstico pra gente, no próprio texto já falava uma baixa expectativa de vida”, disse a mãe.
Para a família, não foi fácil aceitar o diagnóstico. Ricardo aparentava ser um bebê como qualquer outro, por isso era difícil assimilar que ele viveria por pouco tempo.
“A gente tentava fugir da baixa expectativa de vida, até para ocupar a nossa cabeça (…) foi difícil até para contar para a família, não conseguíamos falar sem chorar”, acrescenta.
Contudo, mesmo com o diagnóstico médico, a família buscava um meio de contornar a situação. Em 2014 eles começaram a buscar por famílias que também tiveram casos de Schinzel-Giedion para entender melhor o que enfrentariam.
Navegando pela internet eles acharam um blog do primeiro caso da doença no Brasil. Foi ao entrar em contato com a família que eles ouviram falar sobre a cannabis pela primeira vez.
A criança do blog havia morrido há pouco tempo, mas a mãe disse que se tivessem utilizado a cannabis, talvez a situação seria diferente.
“Ela contou pra gente sobre a cannabis e como era tudo muito burocrático. A autorização só veio quando o filho faleceu”, lembra Jéssica.
As importações de medicamentos à base de cannabis só passaram a ser regularizadas a partir de 2015, mas até hoje é necessário uma autorização prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Mesmo assim, o número de solicitações cresce de ano a ano. Segundo um levantamento da Associação Brasileira de Indústria de Cannabis (BRCann), desde o início da pandemia de COVID-19, 33.077 pessoas solicitaram uma autorização na Anvisa para a importação de produtos à base da cannabis.
O número é três vezes maior que o total de pacientes que tinham uma autorização desde que as emissões foram regulamentadas. Para se ter uma ideia, só nos últimos 12 meses, mais de 26 mil pacientes obtiveram o direito.
Com o aumento, a agência começou a adotar uma série de procedimentos para agilizar as autorizações, como um cadastro automático para pacientes e uma lista pré-definida dos medicamentos mais frequentes.
Tanto é que o órgão substituiu a Resolução 335/15, destinada a importações de produtos feitos com a planta pela RDC 570/21 para agilizar e simplificar os processos.
Os pais de Ricardo também encontraram outra família brasileira que passou pela síndrome. Infelizmente a criança também tinha falecido.
“Isso foi um baque, porque nos gerou mais medo ainda de perder o nosso, foi bem difícil”, ressalta.
Outra guerra era lidar com os gastos. A família não tinha condições de bancar o canabidiol, por isso foram para a TV pedir ajuda para comprar o óleo importado, além de bazares beneficentes. Os exames e consultas também tinham que ser feitos em outros estados.
“No Rio de Janeiro, fomos em um hospital de nome que faz mapeamento genético e como o plano não cobre, eu não tinha como viajar sozinha e até pelo SUS conseguiria passagem só pra mim” acrescenta.
Para comprovar a doença, foi necessário fazer um sequenciamento genético, que na época custava R$3 mil reais e só era feito em São Paulo. Os custos não mudaram muito. Segundo a diretora da associação Casa Hunter, Ariadne Dias, o custo ainda é alto, e não é menor que R$2.000,00 hoje.
Outra luta foi encontrar algum médico que aceitasse colocar o nome na receita médica para a prescrição do canabidiol.
“Aqui no Mato Grosso não conseguimos um laudo de um neuro. Tivemos que ir ao Rio de Janeiro, consultar com uma médica que já tinha experiência com outros bebês da síndrome e com cannabis, e até para fazer um eletrograma decente” ressalta.
Apesar de não ter cura, a cannabis foi uma importante aliada para o tratamento do menino. Além de diminuir as crises convulsivas consideravelmente, Ricardo não regrediu.
Hoje ele consegue fazer a o movimento de sucção (em alusão à mamadeira) quando está com fome e se comunicar do jeito dele com a mãe, algo que nem todas as crianças têm a mesma sorte.
“Tem também alguns movimentos que ele não fazia e que hoje ele faz. Quando algo está incomodando ele até tenta mostrar onde está”, ressalta a mãe.
Segundo o co-fundador do Instituto de Pesquisas Sociais e Econômicas (IPSE) e consultor jurídico Pedro Gabriel Lopes, é possível entrar com uma ação jurídica para o fornecimento do óleo de cannabis pelo Estado.
Principalmente depois do entendimento do Superior Tribunal Federal (STF) em março de 2020.
Pela maioria dos votos, o STF destacou que é constitucional o fornecimento pelo estado, em caráter excepcional, de medicamentos de alto custo que não constam na lista do SUS.
Demonstrando a urgência do caso, o juiz pode dar uma liminar favorável bem rápido. Isso fará o estado providenciar o medicamento em até 48 horas, a partir do momento de início do processo.
Contudo, mesmo com o processo ganho, as coisas não são tão simples assim. A família até entrou na justiça e conseguiu o fornecimento, mas por vezes o produto chegavaatrasado.
Jéssica conta que Ricardo ficou sem o remédio em duas ocasiões, onde teve crises fortes e ela precisou racionar o que tinha. Isso porque a secretaria da saúde só pode comprar novamente depois que acaba um lote, o que pode variar, dependendo da demanda.
Contudo, no meio do ano passado, suspenderam a entrega sem falar com a família. A defensoria diz que o juiz determinou a suspensão porque não conseguiu entrar em contato, mas Jéssica alega que não foi bem assim.
“A defensoria não se comunicava, e eu buscava o remédio todo o mês (…) você não sabia nem onde buscava porque eles mudavam e falavam depois”, diz.
Ricardo teve que passar também por cirurgias gastrintestinais e uma série de exames. “Foi uma correria, ele foi hospitalizado várias vezes e até os três anos eu não tinha vida.” Conta.
Conseguir um home care também não foi fácil. Duas médicas falaram que ela não precisava, que ela dava conta. Foi apenas a terceira neurologista que lhe deu o documento para o apoio em casa.
“Foi uma correria, ele foi hospitalizado várias vezes até os três anos, eu não tinha vida”, ressalta a mãe.
No entanto, o que mais ocupava a sua mente era a baixa expectativa de vida, a família ficava com medo do dia em que ele partisse. Sem perceber, Jéssica começou a desenvolver depressão. Ela até desenvolveu uma úlcera.
“ Depois que passou os três anos, demos uma respirada, eu percebi que não iria ser como o diagnóstico, começamos a viver sem expectativa”, ressalta.
Para voltar a ter o direito, eles precisariam entrar com o processo novamente, mas a família decidiu entrar com uma ação para o fornecimento pelo convênio médico.
. Segundo a Lei Nº 13.146 de 06 de Julho de 2015 os convênios não podem recusar ou dificultar o acesso a pessoas com necessidades especiais, e nem cobrar preços maiores.
Os argumentos que os planos de saúde usam são: que a cannabis não está no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), por isso, não são obrigados a fornecer.
Também alegam que há uma que o julgamento 990, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) desobriga os convênios de saúde a fornecer medicamentos que não foram registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Contudo, segundo a advogada Ana Izabel, os remédios listados no rol da ANS são básicos, o mínimo que o plano de saúde tem que dar de cobertura para os consumidores e não tem que se limitar a eles.
Quanto à súmula 990 do STJ, a Anvisa concedeu autorização excepcional de importação, por isso a agência autoriza o uso do remédio.
Agora, a família aguarda o veredicto.
Tainara Cavalcante
Jornalista pela Facom (Faculdade Paulus de Comunicação) e pós doutoranda na FAAP (Fundação Armando Alves Penteado) em Jornalismo Digital, atua como produtora de conteúdo no Cannalize, Dr. Cannabis e Cannect. Amante de literatura, fotografia e conteúdo de qualidade.
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