Cresce no Brasil o número de leis que pretendem promover o acesso à terapêutica canábica através do fornecimento pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Grande parte da mídia, pacientes, profissionais prescritores e empresas têm comemorado efusivamente essa “conquista” como um grande avanço rumo à democratização do acesso aos tratamentos com cannabis no Brasil.
Mas será que é isso mesmo? Vamos olhar mais de perto…
A maioria dessas leis incorpora o que já havia sido definido em decisões judiciais: o fornecimento de medicamentos pelo SUS com no mínimo, três requisitos: laudo médico que justifique a necessidade do produto para a melhora da qualidade de vida do paciente; comprovação da incapacidade financeira para adquirir o produto; e autorização/registro do produto na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
As duas primeiras exigências não trazem maiores problemas aos pacientes, que muitas vezes já estão habituados a esse tipo de documentação em virtude das tentativas de acesso pelo SUS a outras terapias, comuns a quem trata doenças de difícil controle. Todavia, quanto à terceira exigência, pode significar um retrocesso no caminho para a real democratização da cannabis como ferramenta terapêutica no Brasil.
Basta uma breve observação do cenário atual para perceber a reprodução da dicotomia que sempre marcou o movimento proibicionista no Brasil: as mesmas práticas podem ser incentivadas por um lado e criminalizadas por outro, a depender dos agentes envolvidos.
De um lado, temos mais de 20 produtos derivados de cannabis, produzidos pela indústria e autorizados pela Anvisa para comercialização nas farmácias do Brasil, enquanto de outro lado, segue-se a criminalização dos cultivos domésticos e das associações.
Tal fenômeno indica que se não houver um esforço coletivo pela mudança na atual legislação, de modo a permitir o cultivo no Brasil, sobretudo o cultivo doméstico, associativo e pelas Farmácias Vivas (farmácia do SUS), a inclusão dos derivados de cannabis no SUS será uma verdadeira sangria de recursos públicos para a indústria (canábica e farmacêutica).
Em 2021, após consulta formulada pelo Ministério da Saúde, a CONITEC – Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde, publicou um relatório em que avaliava a viabilidade de incluir no SUS um derivado de cannabis, produzido por uma farmacêutica nacional, contendo CBD (Canabidiol), cuja indicação seria apenas para os casos de epilepsia de difícil controle em crianças e adolescentes. A conclusão foi que, caso todos os pacientes com epilepsia refratária recebessem o produto pelo SUS, o impacto orçamentário poderia ultrapassar facilmente os 70 milhões de reais anuais. Isso sem falar nos pacientes que precisam de utilizar a terapêutica canábica para outras patologias, como dores crônicas, Alzheimer, Parkinson, depressão e ansiedade etc.
Ora, quem faz uso de medicação comum (que não é de alto custo) fornecida pelo SUS, já convive com as frequentes falhas na continuidade do fornecimento. Agora, imagine em se tratando dos derivados de cannabis produzidos pela indústria, cujos preços são impraticáveis para a grande maioria da população? Será que teremos acesso real, seguro e contínuo?
Acrescenta-se a essa questão, o discurso repetido exaustivamente pelos “ativistas da proibição”, de que “são poucas as pessoas que precisam desse tratamento e basta que o SUS compre e forneça gratuitamente” e de que “não é necessário um cultivo e produção de derivados de cannabis em solo brasileiro, pois o SUS fornece”.
Esse discurso visa exatamente manter a planta proibida e inacessível aos pacientes, associações e Farmácias Vivas, enquanto a indústria lucra com a exclusividade na produção e distribuição. E o pior, com dinheiro do SUS, que já sofre com a enorme carência de recursos.
Não podemos perder de vista que a democratização real do acesso à terapêutica canábica somente se dará com acesso ao cultivo da planta e produção dos seus derivados a baixo custo. Sem esse passo, a fatura desta conta será paga pelos mais vulneráveis socioeconomicamente, exatamente os que mais precisam do SUS!
As colunas publicadas na Cannalize não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem o propósito de estimular o debate sobre cannabis no Brasil e no mundo e de refletir sobre diversos pontos de vista sobre o tema.
Sheila Geriz
Mestre em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Sheila Geriz é paciente e mãe de paciente que utiliza a terapia canábica. A analista Judiciária do Tribunal de Justiça da Paraíba coordena a Associação em defesa do uso terapêutico da Cannabis - Liga Canábica, na Paraíba, e também é Coordenadora Geral da Federação das Associações de Cannabis Terapêutica - FACT.
Inscreva-se grátis na nossa Newsletter!
Copyright 2019/2023 Cannalize – Todos os direitos reservados
Solicitação de remoção de imagem
Termos e Condições de Uso