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Para o coordenador de políticas de drogas do IBCCRIM ainda é necessário que a legislação seja para todos e não apenas para quem pode pagar

‘Não pode ser só mais uma commodity’, diz Dudu Ribeiro
Em um dos painéis da segunda edição da Expocannabis deste ano, o cofundador da Iniciativa Negra, Dudu Ribeiro falou sobre os rumos que estão ocorrendo no Brasil relacionados à cannabis.
Para Dudu, que também é coordenador do departamento de políticas de drogas do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), a descriminalização e a comercialização da cannabis hoje não são suficientes para conter os danos causados pelos anos de proibição.
“É preciso enxergar as políticas de cannabis pelos olhos do racismo também. (…) Não nos interessa legalizar a maconha no sentido de que a gente apenas consiga produzir uma nova commodity que amplie a disparidade racial no país.” Disse.
Segundo o cofundador da Iniciativa Negra, a regulação da planta no país deve ajudar a desmontar a guerra às drogas e oferecer saúde para todas as pessoas e não apenas para aquelas que conseguem pagar.
“Ela precisa ser regulada também para reparar os danos profundos que o proibicionismo tem nos causado e vai continuar causando na vida de inúmeras pessoas, na vida de inúmeras comunidades”
Nova cultura
De acordo com o anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, dos 850 mil presos no Brasil, cerca de 70% são negros e pobres. Dados do Ministério da Justiça ainda mostram que o tráfico de drogas é o crime que mais leva pessoas à prisão no país.
O advogado cofundador da Rede Reforma, Emílio Figueiredo, também participou do painel e fez indagações sobre o assunto. Para ele, é necessário refazer a cultura canábica, sobretudo reconstruindo a visão da cannabis sobre pessoas que vivem nas comunidades.
“Não adianta vender maconha na farmácia enquanto a mesma maconha encarcera tanta gente”, acrescentou.
https://cannalize.com.br/nao-pode-ser-so-mais-uma-commodity-diz-dudu-ribeiro/ A proibição da cannabis: violência estrutural

Capítulo do Livro “A proibição da Cannabis: garantismo e violência estrutural” de Gabryella Cardoso

A proibição da cannabis: violência estrutural
Apesar de ser uma substância de interação milenar, cujos usos podem ser diversos e de enorme relevância para os seres humanos, no início do século passado a cannabis passou a ser considerada como uma droga perigosa, levando em consideração a sua utilização por parte das camadas populares dos centros urbanos.
Fato que estigmatizou a ideia entre autoridades médicas, policiais e o senso comum da sociedade a polissemia “pobre-preto-maconheiro-marginal-bandido” ¹.
No campo da limitação do direito penal, onde a liberdade era motivada por convicções dos juízes, houve restrição de direitos e ausência de limites substanciais para seu exercício. O que permitiu que as pessoas estivessem sujeitas ao jugo moral da classe jurídica.
A justiça do racismo
A delimitação do direito penal brasileiro carregou as estruturas políticas do sistema escravagista, que enxergava o negro como uma figura delinquente, transgressora, que necessitava ser detido e recluso, pois oferecia risco à sociedade.
A República instaurou, antes mesmo de promulgar a própria constituição, dois instrumentos penais capazes de controlar a população negra em 1890:
O Código Penal e a “Seção de Entorpecentes Tóxicos e Mistificação”. O intuito era o de reprimir os cultos de origem africana e também o consumo de cannabis, que era realizado durante os rituais do Candomblé, sendo uma manifestação da cultura e identidade africana que resistia entre os afro-brasileiros.²
A medicina majoritariamente cristã da época, passou a produzir exaustivamente estudos que apontavam os males a serem vencidos para o progresso da pátria. Dentre os quais, o consumo de substâncias que alteram a consciência poderiam provocar efeitos negativos à ordenação moral da sociedade.
Consequências
Sob o cunho de defesa da família, do trabalho e da religião, encapsulado num viés de avanço da sociedade, a maioria da população brasileira estava dedicada a construir o “progresso”, “civilização” e “desenvolvimento” da pátria, sendo necessário para tanto, “limpar” qualquer vestígio do passado que pudesse significar um atraso, a desmoralização, o regresso e a barbárie.³
As políticas de higienização para o “progresso” da sociedade que estavam sendo impostas, buscavam justificativas filosóficas e científicas. A ciência representava o que havia de mais promissor para o caminho da racionalidade, e em contrapartida os vícios representavam o que ia na contramão do avanço:
Um verdadeiro veneno capaz de destruir a vida, perturbar o estado psicológico e gerar desgaste social, e era de responsabilidade do Estado, junto à classe médica, atender as exigências do progresso moral e científico da pátria. ⁴
Reflexo no Brasil
Tais políticas eram inspiradas nas manifestações estadunidenses, que aumentaram os investimentos em campanhas de repressão do uso da maconha, tendo uma grande repercussão no Brasil.
Em diversos ensaios médicos, a maconha era associada ao “vício de negro” e à agressividade, violência, delírios furiosos, loucura, taras degenerativas, degradação física e fortalecia uma imagem aterrorizante da maconha.⁵
O psiquiatra brasileiro Rodrigues Dória teve enorme influência na criminalização da maconha, e sugeria em seus estudos que a utilização da cannabis era “parte de uma vingança dos selvagens negros contra os brancos civilizados que os haviam escravizado”.
O seu discurso partia de um viés etnocêntrico, que discriminava a cultura, a religião e a interação de povos que estava determinando a cara dos brasileiros, a diversidade cultural entre negros, nativos e pobres:
É possível que um indivíduo já propenso ao crime, pelo efeito exercido pela droga, privado de inibições e de controle normal, com o juízo deformado, leve a prática seus projetos criminosos. […] a planta é usada, como fumo ou em infusão, e entra na composição de certas beberragens, empregadas pelos “feiticeiros”, em geral pretos africanos ou velhos caboclos. Nos “candomblés” – festas religiosas dos africanos, ou dos pretos crioulos, deles descendentes, e que lhes herdaram os costumes e a fé – é empregada para produzir alucinações e excitar os movimentos nas danças selvagens dessas reuniões barulhentas. Em Pernanmbuco a herva é fumada nos “atimbós” – lugares onde se fazem os feitiços, e são frequentados pelos que vão aí procurar a sorte e a felicidade. Em Alagoas, nos sambas e batuques, que são danças aprendidas dos pretos africanos, usam a planta, e também entre os que “porfiam na colcheia”, o que entre o povo rústico consistem em diálogo rimado e cantado em que cada réplica, quase sempre em quadras, começa pela deixa ou pelas últimas palavras de contendor.⁶
Psiquiatras brasileiros elaboraram teses acadêmicas que criminalizavam negros, nativos, mulheres, capoeiristas, sambistas, maconheiros, prostitutas, macumbeiros, cachaceiros, pois exploravam o argumento que estigmatizava todos que não se adequassem aos padrões sociais de “progresso e civilização”.
Era estabelecido enquanto padrão civilizatório indivíduos brancos “puros”, etnocentrismo semelhante e que teve a mesma origem dos ideais fascistas e nazistas de superioridade das raças que levaram aos regimes autoritários e supressores da democracia, dos direitos fundamentais e garantias individuais.⁷
Embranquecimento forçado
Nos anos 1940 era comum que terreiros de Umbanda fossem invadidos e quebrados por oficiais de polícia sob a justificativa de que estivessem fazendo uso de maconha.
Com o intuito de regularizar a religião e ganhar reconhecimento governamental, os praticantes e chefes religiosos optaram por interromper o uso de cannabis durante os rituais como culturalmente sempre acontecia.
O que foi um traço do embranquecimento forçado da religião Umbanda, que foi descriminalizada e estruturada assim como a capoeira e o samba posteriormente, enquanto a maconha foi criminalizada pelo Código Penal de 1940.⁸
A abolição e a maconha
Os primeiros cinquenta anos que sucederam a abolição da escravidão, serviram tão somente para readaptar as novas estruturas de controle social, reformulando a desigualdade e os instrumentos de controle.
A empresa escravagista, como escreveu Darcy Ribeiro, estruturada a partir da apropriação de seres humanos de maneira violenta e cruel e da coerção permanente, por meio de castigos torturantes e desumanos, “atua como uma mó desumanizadora e deculturadora de eficácia incomparável, submetido a essa compressão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio” para que venha a ser nada, sendo reduzido a uma condição de bem movente.
Tal como um animal de carga, e então passa a ser outro, transfigurado etnicamente na linha permitida pelos seus superiores e compatível com seus interesses. ⁹
O espantoso é que os índios como os pretos, postos nesse engenho deculturativo, consigam permanecer humanos. Só o conseguem, porém, mediante um esforço inaudito de auto reconstrução no fluxo do seu processo de desfazimento. Não têm outra saída, entretanto, uma vez que da condição de escravo só se sai pela porta da morte ou da fuga. Portas estreitas, pelas quais, entretanto, muitos índios e muitos negros saíram; seja pela fuga voluntarista do suicídio, que era muito frequente, ou da fuga, mais frequente ainda, que era tão temerária porque quase sempre resultava mortal. Todo negro alentava no peito uma ilusão de fuga, era suficientemente audaz para, tendo uma oportunidade, fugir, sendo por isso super vigiado durante seus sete a dez anos de vida ativa no trabalho. Seu destino era morrer de estafa, que era sua morte natural. Uma vez desgastado, podia até ser alforriado por imprestável, para que o senhor não tivesse que alimentar um negro inútil.¹⁰
Violação aos direitos humanos
O condicionamento cultural, fruto da escravidão severa é uma inquestionável violação aos direitos fundamentais e todas as garantias individuais, suprimindo a própria existência do indivíduo, suas referências, sua liberdade e todas as esferas da sua vida.
Normas que se originam pela moral condicionadora, estruturante desse sistema e dos próximos que vieram a sucedê-lo.
Dessa forma, também são inquestionavelmente violações das garantias individuais, pois instrumentalizam o controle de uma população sobre a outra, através de seus traços culturais e de um discurso hegemônico e etnocêntrico que apaga todos os outros traços culturais e reduz pessoas à objetos ou animais.
A proibição da cannabis, como aconteceu, serviu a finalidade de criminalizar a população negra, condicionando seus aspectos culturais à marginalização, discriminando não somente as condutas específicas a respeito do uso, plantio, comércio e armazenamento de cannabis, mas principalmente o traço social dos afro-brasileiros.
A proibição da planta foi fundamentada em axiomas morais e para suposta prevenção de outros delitos que jamais existiram, por isso legitimou a supremacia de uma cultura em relação à outra, como também ocorreu com a institucionalização do sistema econômico escravista.
Dessa forma como está posto, o direito penal não garante à democracia e nem tão menos a continuidade democrática, pois é exercido de maneira máxima em relação à restrição de direito dos indivíduos sendo um instrumento totalitário.
A proibição da cannabis se torna apenas mais um formato de violência estruturante da sociedade, que só ascendeu economicamente a partir do genocídio contra a população afro-brasileira.
E que continua vitimando milhares de pessoas a partir do ordenamento proibicionista.
Dra Gabriyella em parceria com CG Class, empresa de educação Cannabica.
Texto ajustado para a leitura digital
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As colunas publicadas na Cannalize não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem o propósito de estimular o debate sobre cannabis no Brasil e no mundo e de refletir sobre diversos pontos de vista sobre o tema.
Referências
1. MACRAE, E.; SIMÕES, J. A. Rodas de fumo: o uso da maconha entre camadas médias urbanas, Salvador: EDUFBA, 2000.
2. BARROS, André; PERES, Marta. Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas. Revista Periferia – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, jul./dez., 2011, p. 11
3. SAAD, Luísa Gonçalves. “Fumo de negro”: a criminalização da maconha no Brasil. Orientador: Prof. Dr. João José Reis. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2013, p. 61
4. Ibidem, p. 61.
5. GONTIÈS, Bernard; ARAÚJO, Ludgleydson Fernandes. Maconha: uma perspectiva histórica, farmacológica e antropológica. MNEME – Revista de Humanidades. Departamento de História e Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, v.4 – n. 7, Caicó, fev./mar. de 2003, p. 12.
6. HENMAN, Anthony; PESSOA JR, Osvaldo. Diamba Sarabamba. Coletânea de textos brasileiros sobre a maconha. São Paulo: Ground, 1986, p. 91-111.
7. BARROS, André; PERES, Marta. Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas. Revista Periferia – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, jul./dez., 2011, p. 13.
8. BARROS, André; PERES, Marta. Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas. Revista Periferia – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, jul./dez., 2011, p. 13.
9. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 76.
10. Ibidem, p. 76.
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